Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

10
Jun 11

Alice embrulhava-se nos socalcos virados para o rio, o Pedro que começava a gatinhar dentro de uma grade de madeira, e no tornozelo um cordel para não se perder no xisto incandescente das manhãs de verão, olhava a paisagem, e com os dedinhos fazia desenhos nas folhas verdejantes das videiras, sussurrava em soluços, que merda de vida vai ser a minha,

 

- Os meus avós desgastaram os ossos nos socalcos do douro, os meus pais, fotocópias dos meus avós, e eu porra?

 

No bolso Alice transportava uma côdea de pão, duro como cornos, e o Pedro sonhava com refeições à beira mar, peixinho grelhado, marisco, lambia os lábios com dois dedos de conversa, e de vez em quando acenava com as mãozinhas aos barcos que subiam o rio, e as fotografias dos turistas começavam a poisar-se-lhe nos ombros tenros como ramos de oliveira, o comboio em sorrisos para o Pinhão, e notava-se no chilrear dos carris que ele já cansado,

 

- Que merda de vida vai ser a minha, focinho na terra, erguer-me à quatro da madrugada, os anos a passarem, nas mãos os calos da enxada, pesadíssima como chumbo, um casebre miserável e uma ninhada de filhos,

 

E fome. E a fome pendurada na chaminé da casa de Alice, mãe solteira, um filho de cada enxada calejada nos dias de inverno, e na noite, na noite ausentavam-se para as terras de Espanha, sempre se ganha alguma coisa, conferenciava António, e a enxada desaparecia da vida de Alice, ficando apenas os rebentos de angústia para alimentar.

 

Olhava a paisagem, e com os dedinhos fazia desenhos nas folhas verdejantes das videiras, no chão o xisto misturado com as fendas parecendo gargantas à procura de água, do corpo o suor que em pedacinhos de nada mergulhava-se-lhe na roupa e o pó pintava-lhe o cabelo de loiro, malditos socalcos, malditas pedras, Alice emagrecia com a rotação dos dias, e do Pedro apenas pequenos choros,

 

- Os meus filhos fotocópias dos meus bisavós,

 

Do Pedro apenas pequenos choros, do Pedro lágrimas; as lágrimas do vinho.

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

10 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 14:11

Junho 2011
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4

5
6
7
8
9





Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Posts mais comentados
mais sobre mim
pesquisar
 
blogs SAPO