Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Afio as orelhas e faço-me à estrada. A noite que dorme no silêncio da lua em combustão milimétrica com os ponteiros do relógio, retiro a fotografia que sempre me lembro de estar pendurada na parede da sala, embrulho-a num pano escuro, e fecho-a para sempre dentro da arca de madeira; luto feito, mas dentro de mim existirá sempre o avô Domingos em farda de gala.

 

O Pinhão começava a adormecer no fim de tarde suspensa nas vindimas em preparação, eu, eu recheado de medo e timidez,

 

- Que paisagem tão estranha, montanhas desgovernadas, a barragem de Bagauste em construção, e o comboio parecia o gatinhar de uma criança,

 

E o avô Domingos mais uns meses a passear machimbombos nas ruas de Luanda, o tio António à nossa espera, e o Pinhão, o pinhão à procura das sombras e dos socalcos, a paisagem era-me estranha, eu estranho dentro da paisagem, e da estação, as minhas mãos prisioneiras aos braços da minha mãe, o encontro de irmãos, o reencontro de pedacinhos espalhados entre Portugal e Angola,

 

- Falta muito cunhado, e o cunhado, estamos quase,

 

Quase a enjoar das curvas e contra curvas, olhava pela janela, que horror, com cada encosta, e eu via o capim e a paisagem perdia-se na imensidão da planície, eu só sabia andar nas ruas de Luanda, o Douro,

 

O Douro metia-me medo,

 

- Falta muito, cunhado,

 

Estamos quase, e a estrada encurvada em subidas íngremes, e é sempre a subir, e eu pequenino a esconder-me na sombra dos pinheiros, e o avô Domingos a chegar ao portão de entrada, eu pendurado à espera, dava-me um abraço, um beijo,

 

- Chegamos, cunhada,

 

Afio as orelhas e faço-me à estrada. A noite que dorme no silêncio da lua em combustão milimétrica com os ponteiros do relógio, pergunto ao meu pai onde fica a praia, e não praia, pergunto ao meu pai pelas mangueiras do quintal, e nem mangueiras nem quintal, videiras e oliveiras, cerejeiras e pessegueiros, amendoeiras, e as bananeiras? E eu olhava os plátanos, e obrigava-os a serem mangueiras, e pegava nos pinheiros, e com lápis de cor, os pinheiros bananeiras, e quando olhava a erva do lameiro, imaginava a areia do mar, deitava-me no chão e começava a rebolar até me cansar, e parava quando uma sombra bloqueava os meus movimentos, e uma gaivota poisava na minha mão, e quando abria os olhos, quando abria os olhos um papagaio de papel brincando nas nuvens…

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

16 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:40

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