Gracias amor…
Adoro-te parvo.
Percebe-se que das nuvens acordam gladíolos e vem-lhe à ideia as amargas palavras do tio Acácio quando pela tarde adormecia junto ao poço, o cigarro pendurado nos lábios, as mãos poisadas sobre o peito, e o tio Acácio em conclusões filosóficas, comparava-se a um cagalhão a boiar na garganta da sanita lá de casa, apenas uma pequena diferença, a cor.
E de pequenino aprendeu que a cor não importa, o poço na secura do verão desalentado de Agosto, os óculos amareleciam com os raios de sol oblíquos, os queixos seguravam-se com dois cordéis que tinha furtado à costura da mãe, e nos olhos duas rodelas de limão para a refrigeração, e a cor encurralada entre a sombra e o pincel que tilintava nos dedos calcinados pela enxada,
- De Cais de Sodré apressadamente para Santa Apolónia, o caracol das 19 horas agarrado ao cansaço dos carris, o automóvel imobilizou-se, a janela desce lentamente, de dentro emerge a farda de gala que o olha e lhe oferece boleia, indeciso, entro não entro, entra, a mochila junto às botas,
De dentro do poço uma voz que pedia ajuda, e as cabras em remoinhos no terreno do vizinho, o tio Acácio pendurado nas nuvens, engasgado na maré junto às rochas, as cabras saltitando de muro em muro, e do poço,
- A mão da farda de gala em carícias nas pernas dele, um semáforo imobiliza-o, o semáforo agarrava-se-lhe ao pénis, pela espinha um calafrio intenso, e da gaita, da gaita a pequinês, diminuindo até desaparecer junto ao rio, paneleiro de merda,
O poço seco, e alguém a afogar-se na sombra.
O corpo começa a estremecer como um veleiro desgovernado, as mãos cruzadas em silêncio, no cérebro circulavam frases, vou foder os cornos a este gajo, abro a porta e salto com o automóvel em andamento, o tio Acácio acorda, levanta-se e olha para a profundidade do poço, nada, apenas o chão térreo e algas vindas da noite,
- Posso convidar-te para sair,
E gracias amor…
Adoro-te parvo, adoro-te quando finges olhar a janela, e sei que me olhas a mim, percorres cada milímetro quadrado do meu corpo, abraças-te como se eu fosse um petroleiro encalhado no Tejo, pegas nos meus seios, poisas-lhes as mãos semi-difusas das ruas da cidade, os prédios escondem-se nos becos, e quando sobes as escadas nos teus olhos de alecrim as gaivotas em desassossego, a fome dos mendigos quando pegas na minha mão, e eu, e o tio Acácio, e o paneleiro, e tu, fartos que este texto termine, e se afunde no poço,
- A pila silenciada durante dois dias, e só ao terceiro ressuscitou, sentada à direita da perna esquerda,
As palavras se afundam no poço.
(texto de ficção)
Luís Fontinha
17 de Junho de 2011
Alijó