Chove, e porque chovem?,
Nas pétalas do sol as nuvens embainhadas na cor do teu vestido, os silêncios amorfos que da minha mão vão até ao fundo da rua, viram à direita, descem ruidosamente as Dálias do jardim e saltam a vedação, o tenente está bêbado, no estômago a vodka esmiuçada em gema de ovo, puré de batata e salada de alface, o corpo geme, o corpo empenado na ombreira da porta, o menino que à porta da igreja pede esmola, pega numa bola e lança-a para os braços do mendigo, o tenente tropeça no vento e cai, a bola rola pelo pavimento como se fosse uma moeda perdida na avenida, geme em voz alta as palavras do livro que poisa sobre a mesa-de-cabeceira, queixa-se em voz alta que lhe dói a cabeça e as tonturas de abraços com os enjoos, foda-se meu tenente, vossemecê bebeu uma garrafa inteira de vodka, se fosse eu, e se fosse eu já tinha tombado na sombra,
- S. Tomé e Príncipe, Setembro de 1971,
Meus queridos,
Estou suspenso entre o ontem e o amanhã, o barco baloiça e o mar parece não ter fim, e o mar é tão grande, e eu tão pequenino pendurado na grade com as pernas presas pela mão do pai, o pai fuma cigarros, e no bar engana o enjoo com bacalhau cru, deixou de vomitar e eu nunca enjoei, depois do pequeno-almoço os camuflados levam-me para a piscina, compram-me brinquedos e cantam canções, não os percebo, mas vêm felizes,
Vou a caminho,
O meu tenente bebe como o caralho, e se eu bebesse assim água estava fodido, andava sempre com a bexiga nas mãos, todas as noites uma garrafa de vodka, não se enjoa?, claro que me enjoa quando vou de cacilheiro para o outro lado e encosto no muro da tia no Pinhal dos Frades e o chão começa a andar, o primo Fernando que morreu agarra-se ao meu corpo basculante, sorri-me e gosto de ti, e ao fundo da avenida a bola apreendida por um agente de autoridade, navalha na mão, e a laranja em duas partes, comes uma agora, e a outra, a outra durante a noite para enganares o estômago,
- Meus queridos, não quero alongar-me, compramos tecidos, búzios que se encostam ao ouvido e ouve-se o ruído do mar, e bugigangas, a noite começa a esconder-se e daqui a pouco vamos partir, os camuflados impacientes, filhos, pais e mães e namoradas e mulheres e sombras que os esperam em Lisboa, e como eu, não percebem esta guerra,
O barco começa a movimentar-se lentamente na barriga do mar,
O livro na mesa-de-cabeceira, a metade da laranja sobre o livro, o agente de autoridade com dois pedacinhos de borracha na mão, a laranja foi-se por entre os dedos, o cacilheiro em roncos no fim da tarde, o tenente esconde nas arcadas do Terreiro do Paço a garrafa de vodka, o primo Fernando o primeiro a entrar no automóvel, coloca o sinto de segurança de diz-me adeus, o fim de tarde sobe até ao castelo e no rio um paquete aproxima-se vagarosamente, um menino pendurado nas grades,
- Meus queridos, estamos a chegar a Lisboa, brevemente em casa,
A ponte incha e derrete-se nas estrelas,
Sorrio para o menino, os cigarros consomem-se no meu peito, e enquanto escrevo um poema junto ao Padrão dos Descobrimentos o menino acena-me, levanto os olhos e percebo que acabo de chegar a Lisboa…, e rio acima desencaixoto-me na confusão do Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, o cheiro intenso a nafta, os braços pegajosos nas asas de uma pomba, a mão para não me perder, o meu tenente nasceu em Angola, pega na garrafa que escondeu no Terreiro do Paço e diz-me que não sabe, rasga a folha de papel e atira com o poema para o rio, prega os olhos à noite e cruza os braços, sei lá eu onde nasci!