“A mágoa ideológica quando a minha mão toca no sol”,
Da frase,
Impressa no muro do silêncio que divide o ontem do hoje, o segmento de recta da solidão quando na tarde a sereia do automóvel avança musseque adentro, enterra-se na lama, dilui-se na garganta do buraco da rua pavimentada a côdeas de pão, “A mágoa” presa ao betão aldrabado por mais areia que cimento, o traço três por um, três partes de areia uma parte de água e cimento nenhum, “ideológica quando a minha mão” toca nas flores silvestre do campo e escorre através do zinco calcinado do sol, a frase desce a encosta íngreme do mastro de um veleiro, nas velas os lábios da tarde quando no mar brincam as gaivotas “toca no sol” e foge para o pavimento térreo e lamacento que são os meus dias,
- O meu corpo deixa de respirar na maré cansada do amanhecer,
Eu morto,
E encalhado na doca de Santos preso à terra com cordas de sombras que no passo apressado dos transeuntes um rebocador dá aos pulmões e puxa e puxa e não saio do milímetro onde durmo, o zinco muda de cor, e na cor as pétalas da tarde em cio, com o cio as ratazanas buscam nas fendas da boca a claridade da noite, o musseque extingue-se e desaparece da paisagem,
- Os socalcos do Douro comem os meus pobres e cansados duzentos e seis ossos, afundo-me no rio e as algas agarram-se-me às nádegas inchadas do desemprego,
Dizem, dizem-me, oiço na manhã,
Que os pássaros são pássaros, o miúdo que a cada pontapé na bola um vidro estilhaçado, um prédio em ruínas, 5 4 3 2 1 e ergue-se de braços abertos sobre os plátanos e deixo de o ver, o muro do silêncio cambaleia e no vento deixa cair a frase “A mágoa ideológica quando a minha mão toca no sol”, esfarela-se como migalhas do pão duro que atirava ao candeeiro na messe de sargentos, e a velha a perguntar-me Porque estouraram as lâmpadas do candeeiro?, sei lá respondia-lhe que devia ser gases, os intestinos empapados na solha do jantar de ontem,
- O meu corpo engolido no xisto do pavimento, e esta paisagem não me alimenta,
Ninguém, ninguém a agarrar a minha mão, e o meu corpo mergulha nas águas profundas do Douro,
Que a cada pontapé na bola o sorriso do vidro, maricas, fincava as mãos na algibeira e perdia os olhos no lameiro abraçado à erva fresca da manhã, na ardósia cresciam as palavras da infância e dos números o giz na poeira silenciada da mão da professora, as bolas de naftalina protegiam-me da sandes de fiambre ao fim da tarde, a esmola orgulhosa do caricas, e que velho tão filho da puta,
- No Douro?, não, não fico nem mais uma nuvem,
Começo a escorregar pela traqueia da noite,
A frase “A mágoa ideológica quando a minha mão toca no sol” mistura-se com a solidão dos dias e dentro do estômago as vogais com a cabeça estonteada rumo aos intestinos, e puxa e puxa e não saio do milímetro onde durmo, o rebocador sanita abaixo e na tosse da doca de Santos suicida-se contra o vento, os pedacinhos de porcelana no chão da esplanada, e os números da ardósia somam-se, e os números da ardósia multiplicam-se e fingem abraçarem-se ao segmento de recta da solidão,
- Sei lá eu porque estouraram as lâmpadas do candeeiro Dona?, escrevia eu na parede da messe a frase A mágoa ideológica quando a minha mão toca no sol”,
Três dias de castigo,
Na sombra poeirenta da caserna, e puxa e puxa e não saio do milímetro onde durmo.