Sou prisioneiro de uma fotografia
Suspensa na parede da sala,
Fardado sobre um carro militar enferrujado na sombra de Belém, nas botas o esparguete com queijo derretido e ao fundo a ponte que abraça Lisboa e Almada, o rio não o vejo mas sinto o cheiro intenso de perfume que os barcos transpiram de margem a margem, minúsculos automóveis movem-se como mosquitos sobre o estrume esquecido na eira, e o vento ergue-me a boina e depois de alguns metros voando sobre o escaldante asfalto da parada, cai de barriga para baixo e não consegue levantar-se,
- O pânico de perceber que estou sentado num veiculo de museu e de cabeça descoberta, ao cabelo o vento nada faz, porque o meu cabelo ficou junto ao portão quando entrei no mês de maio,
A aflição minha, Será que se magoou?, ao que ela me responde que não, apenas alguns aranhões e pouco menos, mais descansado fiquei,
- Desço como se fosse a sombra no fim da tarde a entrar nas coxas do tejo, dou uns passinhos, baixo-me e apanho-a, e ouço um Ai na voz rouca da boina,
O corneteiro em toques desafinados, a hora de saída, a esplanada frente ao museu dos coches que me espera, a descer a calçada um carro desgovernado e em gritos abstratos,
- Saiam da frente, saiam da frente, saiam da frente,
Os travões em levantamento de rancho, e eu pensava Quem consegue comer esta porcaria?, digam-me, Já viram estas raquetes da tropa?, a solha no tejo a descongelar, e eu voltava a gritar, Já provaram estes malditos cordões da PE?, e o esparguete sonâmbulo no corredor da messe,
- Saiam da frente, e os pés deslizavam sobre o paralelepípedo da descida, E não é que o caralho do carro bateu com a focinheira na esplanada!, o policia agasalhado na multidão a contar a mesma história a cada nova sombra que chegava,
E depois de o ouvir pensei, Foda-se, e se eu lá estivesse sentado como estou em todos os fins de tarde?, a bola de Berlim tombava, a chávena e o pires às cabeçadas contra a retrete pública, desciam as escadas e entravam, e um cabrão a olhar-me a pila como se ela fosse uma rosa nos jardins de Belém,
A sopa de pedra uma merda suspensa na sanita tuca, e duas fardas na brincadeira atiram com uma bota militar para dentro do pote enorme de sopa, as bocas suspensas, e os pensamentos misturados com o vapor da cozinha, E agora?, e alguém se lembrou de procurar a verguinha de aço que servia para desobstruir as condutas do saneamento, arregaçou as mangas da farda e pescou-a,
- A unanimidade na sala de que a sopa estava divinal,
E estava.
E estou, sentado no sofá a olhar para uma fotografia com alguém que não conheço, nunca fui eu, reconheço a ponte, reconheço o carro enferrujado, mas a farda que está sentada sobre ele é-me completamente estranha, e penso, e penso,
- E se algum dia este gajo me entra porta dentro?