O erguer-se na manhã, olhar-se no espelho e o medo ao cadáver suspenso nas lágrimas do guarda-fato,
Em corrida para a casa de banho e esconder-se na banheira, prepara o banho para desinfetar a pele das teias de aranha da noite, a água escorre lentamente contra os azulejos, o estômago em roncos de desperdício à espera do pequeno-almoço, e com sorte hoje pequeno-almoço, e falando de sorte recorda-se-lhe a infância quando se escondia no capim encharcado da tarde, olhava o céu e pedia um desejo,
- Quero voar,
E nunca voou, dei com ele esquecido sobre o guarda-fato e embrulhado em pedaços de lençol envelhecido no linho do tempo, anos, anos e anos e que eu saiba os voos dele resumem-se a idas à casa de banho, um líquido escuro subtrai-se-lhe da boca e ancora no silêncio da sanita, puxa o autoclismo e as nuvens entram-lhe pela janela, couves do quintal na porta de entrada, pessegueiros esganiçados na espera e os pássaros nãos os querem comer, as pedras atiradas aos cornos das cabras, e o farrusco que se extingue de osso na boca,
- Duzentos e seis ossos alinhados numa rua de luanda, contava-me ele,
O banho que finge alimentar-se das teias de aranha e estas continuam agarradas ao corpo como se fossem sanguessugas, os dentes calibrados na máquina de costura, a velhinha Singer com um pano de cetim preso na boca, duas voltas circunflexas na eira e o osso desparecia na sombra do farrusco, abria a porta e as couves tombadas na fome da sanzala,
- Olhava o mar e agarrava-me de braços acorrentados no pescoço da minha mãe, e gritava,
E ninguém o ouvia, nem barcos, nem ondas, nem o Mussulo, nem a estátua da Maria da Fonte, os aviões escapuliam-se pelas folhas das mangueiras como gaivotas envenenadas pela solidão dos dias, e a tarde descia no cacimbo dos mabecos,
- Deitava-me no chão fino da terra e amêndoas de chocolate cobriam-me os braços, as formigas vinham em meu socorro, e a saliva prendia-se-me na areia da rua,
A fome engelha-lhe as mãos e os braços e os olhos, as côdeas de pão minguam junto ao rio e os socalcos nas vibrações inconstantes do cheiro a diesel de barcos de recreio e comboios a vapor, a água evapora-se nos seios de vinhedos e quando chega ao púbis da vindima o mosto de girassol entranha-se no xisto embaciado da noite, uma luz acende-se na capela encalhada na montanha, um terço sorri à passagem de uma trovoada, e o esforço do ano árduo de trabalho dilatado nas cómodas apodrecidas do capitão marinheiro sem barco, deitado na banheira na esperança que do musseque venha até ele um papagaio de papel,
- Nem um cacho para amostra,
Durante a noite corre lentamente o lençol das horas, ergue a cabeça no sentido da janela, e repentinamente e em corridas cansadas faz-se à pista, desliza sobre o guarda-fato e pensando que a janela está aberta estatela-se contra os vidros espessos de garrafa que apodrece no vidão, o vinho derrama-se sobre a cama e no soalho espreita uma lagartixa ensonada, o crocodilo em madeira que trouxe de angola em guarda no hall de entrada, e o mar começa a distinguir-se no prato de sopa abandonado na mesinha-de-cabeceira, e ao longe um petroleiro acena-lhe e diz-lhe,
- Chegamos a lisboa,
A ponte amarra-se no candeeiro que saltita de rua em rua, o machimbombo desgovernado sobe as escadas até ao sótão onde deitado se distingue o musseque em coberturas de zinco, e o sol come-os em fatias de pão e alicerces de mandioca, os charcos de água incham e o petroleiro camuflado nas árvores do jardim engasga-se nos pêssegos e no machimbombo; vem a noite e acendem-se as luzes da fome.