“A TERRA É DE QUEM A TRABALHA E O FRUTO DE QUEM O COLHE“, deixaram eles escrito no papelão da noite na horta do tio Serafim,
- Malandros, tantas horas de trabalho, e tantos dias de canseira, e para quê? Resmungava o tio Serafim enquanto retirava o papelão espetado na terra húmida do amanhecer,
E lamentava-se das lindas couves, das brilhantes alfaces, e dos tomates e dos pimentos, de tudo, e até contra o governo, como se este tivesse culpa do sucedido, e em passos repentinos começa a lavrar a horta com as botas pesadas dos tempos da guerra quando saltitava entre o capim e ouvia durante a noite o rosnar dos mabecos, e às vezes deixa-se adormecer no quartel do Grafanil, e quando ao final da tarde saía em direção à cidade via um menino sentado sobre o portão com um papagaio de papel, um rolo de cordel à espera do avô que durante o dia passeava machimbombos nas ruas de Luanda,
- Isto nem dá vontade de trabalhar, a gente trabalha e eles colhem, a gente adormece e eles invadem-nos os quintal, servem-se e nem obrigado, e enquanto ouço o tio Serafim vem-me à memória quando ele em Lisboa, durante a noite, saltitava de tasca em tasca, perdia-se nos fados, e dizia que era artista, cantava quando estava bêbado, e percorreu milhas de sofrimento dentro dos bacalhoeiros rumo ao Pólo Norte,
Um dia cismou que ia para o Brasil, chegou a Cais de Sodré e ficou-se na noite, e quando regressou à aldeia muitos anos depois, embrulhado num fato branco e chapéu, a voz sumia-se-lhe no correto Português do Brasil, e de adega em adega e em golinhos de vinho verde cantava o fado com sotaque Brasileiro,
- Fui, e enquanto ia o chapéu tapava-lhe os olhos, e pelos caminhos desérticos e escuros cantarolava qualquer coisa inaudível,
Tropeça nas calças do senhor abade e vai de encontro ao crucifixo granítico do largo da aldeia, puxa de um cigarro, olha as estrelas da noite de Luanda, ouve o mar que se enrola na marginal, e cai no chão como uma manga que se desprega da mãe,
A noite desliga-se e dorme, e o tio Serafim tira da algibeira o lenço de seda, leva-o aos olhos e limpa as lágrimas, e alguém que passa lhe segreda,
- A vida de artista é fodida, não é amigo?,
O tio Serafim encolhe os ombros, e em silêncios responde-lhe que não sabe, e enquanto olha a terra trucidada pelas pesadas botas da guerra recorda-se das alfaces, das couves, dos tomates e pimentos que ainda ontem lhe sorriam…