Não sei o que fazer, ele enquanto olhava o precipício e com a ponta do sapato ia lançado pedacinhos de areia, e a areia evaporava-se no aperto que sentia dentro do peito, o coração palpitava e saiu porta fora, e saltitava nas rochas,
Descalça os sapatos e atira-os como quem lança pedras, os sapatos descrevem uma trajetória de projétil e estatelam-se sobre o mar, e ele Dos sapatos já estou livre,
Mas nem sempre são os sapatos que nos pesam, dizia-lhe eu enquanto o convencia a sair de perto do penhasco, e ele para mim Às vezes o peso está no corpo!, e respondo-lhe que sim, e ele tem razão, às vezes o peso está no corpo, nas mãos, nos olhos, nas flores, nas nuvens, no amor, mas nada nos garante que depois de cairmos precipício abaixo o peso diminua, o corpo morre, mas o peso continua lá,
Não sei o que fazer, ele enquanto olhava o precipício e com a ponta do sapato ia lançado pedacinhos de areia, e às vezes ficamos sem saber o que fazer dizia-lhe eu Às vezes ficamos sem saber o que fazer!, e quando ficamos sem saber o que fazer o melhor é não fazer nada, e assim evitamos cair pelo precipício, e o arrependimento pode ser tarde,
Das calças já estou livre!, e aos poucos todas as peças de roupa precipício abaixo, todas, fica nu, e eu pergunto-lhe E agora?, ele prende os olhos no infinito e responde-me que vai começar a atirar penhasco abaixo cada um dos seus ossos, primeiro um, depois outro, depois outro, e eu discordo, porque levará muito tempo, porque para deitar fora duzentos e seis ossos é uma eternidade,
E começa a descer a noite, a neblina entranha-se-lhe no corpo, o coração galga o penhasco e novamente no conforto do peito, e ele senta-se numa pedra a olhar o acordar da noite, e eu despeço-me dele e continuo a caminhar paralelamente ao precipício, a um metro do vazio, e uma voz sussurra-me ao ouvido Ainda bem que não te atiraste, agora não caminhavas rente ao penhasco!,
Nem via as gaivotas de regresso a casa.
(texto de ficção)