Mal consigo pegar na esferográfica, poiso-a e levanto-me, e encosto-me à janela virada para o rio, ao longe entre os socalcos da noite uma luz chama-me, olho-a nas palavras simples que alimentam os girassóis da manhã, os figertips “simple wordas” começam a descer lentamente encosta abaixo, puxo de um cigarro engasgado nos ponteiros de um relógio esquecido na parede da sala, o fumo ergue-se e desaparece pelo vidro da janela, e repetidamente mergulho nas minhas palavras, brinco com a janela e do fumo do meu cigarro a minha voz que se estatela e fica em pedacinhos junto ao rodapé,
Os figertips em silêncio, o rádio amuado com a minha presença,
A esferográfica sobre a secretária aos rebolões como se fosse um menino na praia de Luanda, a ilha do Mussulo agarrada aos meus tornozelos, oiço a esferográfica em gemidos,
- Mãe, tenho medo do mar,
E a esferográfica pendurada no pescoço da minha mãe, eu fechava os olhos e escondia-me entre os cabelos dela, E hoje sou um apaixonado pelo mar,
Os figertips em silêncio,
E apenas eu e a janela, e mais distante de mim a esferográfica, e ela chama-me tal como a luz que piscava entre os socalcos da noite, a esferográfica pede-me que a abrace e escreva alguma coisa hoje, e hoje mal consigo pegar na esferográfica,
- Estás cansado?, e que não respondo-lhe eu, Não estou cansado, mas hoje, hoje não, desculpa-me,
Hoje recordo-me quando escrevia na velhinha máquina de escrever, a janela em sorrisos para a noite de Carvalhais, em S. Pedro do Sul, o avô domingos encalhado na cama de casal, a luz aos soluços conforme o tio Serafim ligava e desligava o moinho elétrico, e os grãozinhos de trigos na finíssima brancura da noite, mas hoje, hoje não me peças para escrever, hoje não sou capaz, hoje apetece-me passar através dos vidros embaciados pela minha respiração, e só assim consigo perceber que estou vivo, olho os vidros e sinto o meu vapor de água salgada na saliva das estrelas de Carvalhais, os morcegos aos encontrões à ramada, e um cacho de uvas entrava dentro do meu quarto e sentava-se junto à velhinha máquina de escrever,
- Estás cansado?, e que não respondo-lhe eu, Não estou cansado, mas não te quero pegar hoje, e se hoje escrevesse alguma coisa, eu escrevia,
Quando os cacilheiros se escondiam no fumo dos meus cigarros, eu inanimado junto ao rio Tejo, e de Belém vinha até mim o cheiro da madrugada, às vezes apontava na sombra o número de vezes que o comboio se deslocava para Cascais, e quando acordava já ele estacionado em Cais de Sodré, o cheiro do rio dentro de mim, deitava-me para tás e olhava as estrelas, e no teto da camarata formigas e baratas, e no corredor ratazanas em discussões, só lhes ouvia os gritos, mas imaginava que umas agarrassem no cabelo das outras, tal como as mulheres quando entram em brigas, e fechava os olhos, e sobre mim o pesadíssimo nevoeiro da madrugada, e sobre mim a voz dos carros que circulavam sobre a ponte 25 de Abril, e os sonhos não conseguiam subir a calçada da Ajuda,
- Então porque não pegas em mim e escreves,
Porque me cansei de ti, porque tenho saudades da velhinha máquina de escrever, e porque hoje, hoje minha querida esferográfica, hoje mal te posso pegar…
Hoje não crescem palavras nas minhas mãos, hoje vou deixar-te poisada sobre a secretária…
(texto de ficção)