Ela com o pedacinho de pizza na boca, e com a língua em suspenso, construía brincadeiras de meninos à beira mar. Com uma das mãos batia os dedos a bater na mesa, e da outra mão, onde segurava mais um pedacinho de pizza em lista de espera para ser saboreada, um feixe de luz acordava na noite.
- Não gosto de pizza.
Já comeste pizza alguma vez?
- Não, não comi. Mas não gosto…
Apressadamente sentada, o comboio em suspiros junto ao Tejo, apressadamente em chegar a casa, abrir a porta, esperar pelo homem da pizza, e a pizza primeiro do que ela, paga a pizza, desencaixotar essa coisinha redonda, e,
- eu com o pedacinho de pizza na boca, e com a língua em suspenso, construo brincadeiras de meninos à beira mar. Deixo o Tejo na carruagem de traz e abraço-me ao fim de tarde, fecho os olhinhos e sinto-me a viajar numa nuvem encarnada, e quando abro os olhinhos, deus, deus à minha espera, eu cansada, eu desejosa de chegar a casa, e não me convinha nada conversar agora com deus, eu com o pedacinho de pizza na boca,
Não gosto de pizza.
- Não, não comi. Mas não gosto…
Deus espera por ela, deus à espera de uma pizza quase a ser comida, deus pega-lhe na mão, olha-a nos olhos, pega-lhe na mão, e ela desejosa de chegar a casa, desencaixotar a coisinha redonda, e,
- eu com o pedacinho de pizza na boca, e com a língua em suspenso, construo brincadeiras de meninos à beira mar,
O comboio em solavancos, o ranger do aço nos meus ouvidos, e uns metros mais à frente, para, imobiliza-se tal como a pizza dentro da caixinha de papelão, um vagabundo adormecido na linha, o comboio em cima dele, deixou de ter fome, já não precisa de pizza, ele angustiado, suicida-se,
- Não, não comi. Mas não gosto…
A barba enrolada no pescoço, e dos cabelos migalhas de pão lançadas aos carris, e quem se importará com o suicídio de um mendigo, ela desejosa de chegar a casa, ela cansada, ela,
- eu com o pedacinho de pizza na boca, e com a língua em suspenso, construo brincadeiras de meninos à beira mar, o mendigo olha-me e franze o sobrolho, tem fome, não tem cigarros, eu cansada e desejosa de chegar a casa, o comboio parado, o mendigo em fim de suicídio, as palavras do costume, coitadinho, foi mais feliz assim, era um infeliz, deus fez-lhe um favor…
- Não, não comi. Mas não gosto…
E deus acaricia a mão dela, e promete-lhe que nunca a vai abandonar,
- Já comeste pizza alguma vez?
E deus desata a sorrir…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
21 de Março de 2011
Alijó/Portugal