Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu apenas queria fazer a depilação. Nada de mais. É assim tão difícil?
Vou à janela e puxo de um cigarro, eu sei que não devia fumar, mas também não devia ouvir certas coisas e oiço, e das conversas que se construíam na sala de espera de nada me interessavam; eu só pretendia fazer a depilação…
Em cima de uma mesa as revistas do costume, as perguntas parvas do costume,
- beijei o meu namorado, será que estou grávida?
E eu que já nem me lembro da ultima vez que me veio o período,
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
No rádio alguém pede Tony Carreira,
- que mau gosto,
Na parede um crucifixo olha-me, deseja-me, e eu a ficar sem jeito,
- talvez porque hoje tenho a saia curta de mais,
Começo a sentir-me possuída com aquele olhar, incomodada, mas…
- mas Cristo também devia desejar mulheres,
E eu feliz por me sentir desejada…
O cigarro musicalmente vai percorrendo as avenidas da minha espera, e do fumo, do fumo vejo as sílabas a saírem pela janela, em baixo, na rua, um homem muito mal vestido pede cigarros,
- um cigarrinho,
E as sílabas a construírem frases, e das frases… palavras que se encaixavam na minha mão, e a minha mão não um livro,
- uma mão,
Um livro perdido na janela do primeiro andar, um livro onde não posso escrever mais nada, e ele aos tropeções nos paralelos da calçada,
- minha senhora, um cigarrinho por favor…
Não fumo.
Na sala de espera um frenesim de vozes, uma senhora porque o governo já devia ter caído, outra, que vai cair amanhã, uma outra, junto ao umbral da porta, dizia,
- se cair eu apanho-o,
E eu nem o apanho nem o derrubo, eu só quero fazer a depilação.
- será que estou grávida? Mas não beijei o meu namorado…
E o meu namorado junto ao rio a contar algas, e de cigarro na boca envia mensagens às gaivotas, e as gaivotas não até mim, eu no primeiro andar, desejada por um crucifixo há não sei quanto tempo naquela posição, esquecido na parede juntamente com as fendas,
- há quanto tempo se formou o universo?
Nada de mais. É assim tão difícil?
(texto de ficção)
Luís Fontinha
22 de Março de 2011
Alijó/Portugal