Eu entalado entre a escuridão e o abismo, ao fundo da rua o mar, e a minha mão prisioneira na tempestade, trémula, cansada, eu entalado, e aos poucos a ser espremido pelo medo da noite, um candeeiro olha-me, um candeeiro ilumina-me, e a sombra é tanta que quase não dou pela sua presença.
Junto a mim um dos poucos amigos que tenho, o meu cão, o meu rafeiro, e ele sei que não me abandona, ele sempre junto aos meus tornozelos pronto se for necessário a passar-lhe os poucos dentinhos que tem, coitado, está velho, eu estou velho, eu entalado entre a escuridão e o abismo, ao fundo da rua o mar, e a minha mão prisioneira na tempestade, trémula, cansada, e o semáforo vermelho, stop, o mar tão perto de nós, e nós tão longe da maré, quando um marinheiro se suicida no pôr-do-sol, e no pôr-do-sol sorrisos do sol e lágrimas da lua.
E a sombra é tanta que quase não dou pela sua presença, enrosca-se no meu corpo polido pelo cansaço, dentro do guarda-fatos do quarto, tenho medo do espelho, medo do meu rosto quando na manhã desata a correr pelo corredor como um louco, e a enfermaria atulhada de malucos, eu lá espetado junto à janela a olhar os plátanos, e nos plátanos pássaros feios me olham, e se não houvesse janela… se não houvesse janela comiam-me como comem os insectos, ao pequeno-almoço.
Eu entalado entre a escuridão e o abismo, e sobre a secretária uma ferrugenta máquina de escrever alimenta-me a vontade de viver, oiço o batimento do seu coração, está apaixonada, está rodeada de malmequeres junto ao rio, e o rio, o rio apressadamente nos meus braços…
(texto de ficção)
FLRF
29 de Março de 2011
Alijó