Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

30
Mar 11

O meu cão em gemidos dia e noite, o meu cão chora, o meu cão apaixonado pela cadela da vizinha, e a cadela da vizinha indiferente ao seu chamamento, não quer saber, e eu, eu também não; que se desenrasque, que se faça à vidinha, que já é crescidinho.

Come muito, e deixa comer as pombas, e as pombas com relógio no pulso, à hora exacta, à hora marcada lá estão elas de volta dele, e ele, ele nada, indiferente, só pensa na cadela da vizinha, passa os olhos pelos censos, dá dois roncos e papelada para a sarjeta, pronto,

- Está respondido, nem mais,

Quer lá saber o Noqui dos censos,

- nem eu,

Come muito, e deixa comer as pombas, senta-se junto ao riacho e perde-se na paisagem, chama as saudades de quando criança caminhava sobre as nuvens, junto à lua, e hoje não lua, e hoje não criança, e hoje não nada, apenas cinzas à beira da estrada, valetas suspensas na madrugada, quando o ontem partiu e levou consigo o amanhã, e ele, ele deitado junto ao riacho, dorme, ressona, cisma pela cadela da vizinha, e a vizinha ausente, e a cadela da vizinha à janela, pendurada nas cortinas, e as cortinas fantasmas da sombra que a manhã desencaixotou na alvorada, eu cansado, ele dorme, as pombas à sua volta em brincadeiras de meninos hoje homens, hoje envelhecidos pelas ruas da cidade, não comem, não tomam banho, não ninguém.

Onde residia em 31de Dezembro de 2005?

- na mesma casota onde resido hoje,

E em 2009?

- na mesma casota onde resido hoje,

Onde nasceu?

- Luanda, Angola, 23 de Janeiro de 1966, freguesia do Carmo, o meu cão em gemidos dia e noite, o meu cão chora, o meu cão apaixonado pela cadela da vizinha, e recordo as idas ao Mussulo e deixava-me levar pelas ondas…

E hoje não ondas, hoje o meu cão em gemidos na noite, hoje não paciência para este país desgovernado, hoje vi o mar, hoje sentei-me junto ao cais e rezei,

- um ateu reza?

Sim. Hoje rezei e deus sabe porque o fiz.

Come muito, e deixa comer as pombas, e as pombas com relógio no pulso, esperam pelas sobras do meu cão, e o meu cão em gemidos pela cadela da vizinha,

- Sim. Hoje rezei e deus sabe porque o fiz.

 

 

 

(texto de ficção)

FLRF

30 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:46

O objecto perde a forma na mão

Que o segura,

Mutila-se nos segundos temporais

E se esconde do tempo que perdura,

 

O objecto deixa de me pertencer,

Fica pequenino, minúsculo,

O objecto na minha mão

Preso por um músculo

 

Que do meu corpo se separou.

O objecto perde a forma na mão

Que o segura,

E nos olhos da madrugada a canção

 

Da lua quando acorda,

O objecto submerge em mim

Como um espelho ao fim da tarde…

Como um sorriso vindo do jardim,

 

Quando fumo o meu cachimbo.

O objecto está cansado,

O objecto enlouquecido pela escuridão

Abraça-se ao meu corpo ancorado.

 

 

 

FLRF

30 de Março de 2011

Alijó

 

http://milove.blogs.sapo.pt/

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:36

O encarnado abraça-se no azul, e o castanho brinca com o amarelo, a minha tela começa a ter vida, cresce na sombra das palmeiras, e alimenta-se dos sorrisos da primavera, encosto-me ao relógio de parede, ele parado nas semanas sem comida, as horas esquecidas junto ao soalho, e escapam-se pelas frestas envelhecidas da sala onde me escondo.

A tela encharcada em cores, e eu, eu olho-me nela como se fosse um espelho. O meu rosto sobre a mesa e as minhas mãos à espreita na algibeira, o encarnado abraça-se no azul, e o castanho brinca com o amarelo, a minha tela começa a ter vida, cresce na sombra das palmeiras, alimenta-se dos meus lábios ressequidos da tarde em delírio, e na minha boca brincam as algas da preia-mar quando um marujo entra pelo mar, e o mar, o mar em silêncios de noite, e no relógio de parede as asas de um cisne que se dobram ao fechar da porta.

A tela embrulhada nas cores, e nas cores a minha mão poisada, ao de leve, e sem pressa, um comboio apressado corre em direcção ao Tejo, e do outro lado o Cristo Rei condena-me pelo meu Ateísmo; e quando no ontem eu nas margens do rio fumava e lançava sorrisos à água, e o Cristo Rei fazia-me caretas, odiava-me. Eu via nos seus olhos.

Lanço o meu esqueleto ao rio e chego ao mar.

Até Luanda é um saltinho.

 

 

 

(texto de ficção)

FLRF

30 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 18:16

(não desistas de viver)

 

Prendem-se nos teus lábios as palavras

Que quero ouvir

Meu doce desejo

Que na tua boca se revolta

 

Que a tua mão toca

Um sorriso florir

Um jardim amargurado.

Prendem-se nos teus lábios

 

Silêncios da manhã

Fúrias que o mar envolta

Na madrugada

Quando o rio se abraça à rocha…

 

O mar sobe pelo teu corpo

E nos teus olhos crescem algas.

Em suspenso no teu rosto

Brincam gaivotas

 

Passeiam-se crianças

À procura da primavera

Entalados nas acácias

Que nos teus lábios

 

Se prendem as palavras

Que quero ouvir…

Meu doce desejo eu querer;

(não desistas de viver).

 

 

 

FLRF

30 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:18

 

 

Pego num livro de A. Lobo Antunes e suspendo a minha revolta nos cachimbos estacionados na estante dos livros. Pensando melhor, ninguém, nada, têm culpa da minha fúria, pego num livro e converso com as personagens, e enquanto me alimento de páginas deliciosas, esqueço-me das necessidades à minha volta.

Talvez amanhã seja outro dia, talvez amanhã o sol me ilumine, talvez amanhã o mar entre pela janela e se deite na minha cama.

Talvez amanhã, hoje, hoje não…

 

 

FLRF

30 de Março de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:34

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