Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, eu, um perfeito idiota de chapéu na cabeça em pose de puta à espera de engate com dois dentinhos e sorriso de merda; o meu retrato.
- Ri-se de quê este palhaço?
Ri-se de quê este palhaço, eu, um perfeito idiota, perdido nas cânforas manhãs adormecidas da cidade, deambulando pelas ruas com um cordel na mão que suspende um papagaio de papel e com um sorriso espanta as gaivotas junto ao mar, eu, um perfeito idiota, eu sentado junto à estátua da Maria da Fonte, e hoje, hoje não sei o que é, ri-se de quê este palhaço,
- Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, e hoje não crucifixo, e hoje não pulseiras, e hoje não anel, e hoje não sorriso, hoje à espera da chegada da maré e me leve para o infinito ao encontro de duas rectas paralelas, carris em perfeito estado de desolação, cansados, carruagens em desassossego que esperam transeuntes complicados, fodidos como eu com a vida,
E a vida ri-se de quê este palhaço, desempregado, fodido, humilhado, crucificado na freguesia do Carmo numa manhã de nevoeiro, as galinhas na capoeira, e as pombas deitadas no cansaço das galinhas, e ela, e ela encostada às mangueiras que faziam sombra sobre o meu quintal, não chove, ri-se de quê este palhaço deitado no capim e com medo do regresso, e porquê, e porquê me trouxeram, eu morto, eu enterrado, eu à espera do paquete, e como eu teria desejado que se afundasse na passagem do equador,
- Eu, um perfeito idiota de crucifixo ao peito, pulseirinha nos braços e um anel, empoleirado nas grades do navio, e ao longe, ao longe o meu triciclo que ficou lá, ao longe um papagaio de papel em brincadeiras na chuva,
Ri-se de quê este palhaço?
E a chuva a fugir-me, e a chuva a esconder-se na minha mão, e a minha mão encostada à mesinha, e pergunto, e pergunto-me,
- Ri-se de quê este palhaço?
O meu retrato.
(texto de ficção)
Luís Fontinha
5 de Maio de 2011
Alijó