Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Mai 11

Sábado, fim de tarde, princípio da noite, aos poucos o néon acorda nas ruas, labirintos que se multiplicam no espaço quando a sombra começa a assobiar nos paralelos da calçada, um homem bêbado sai da tasca, tropeça no vento, poisa em casa como um petroleiro desgovernado, entra em casa, entra em casa e espanca a mulher como se ela fosse a culpada dos problemas dele, os filhos indecisos, os filhos suspensos na noite, os filhos não têm a certeza se acudir à mãe ou segurar o pai que cambaleia como um cortinado quando a janela sorri para a rua, a mulher cansada, a mulher um dia inteiro de escravatura nas vinhas do douro, sobe socalco, desce socalco, olha o rio, e o rio sorri-lhe nos olhos, as mão calejadas pelos minutos divididos em vinte e quatro horas, a mulher sustenta a casa, dá comida aos filhos, a mulher leva pancada antes de adormecer, e antes de adormecer, abre as pernas, mistura as lágrimas com os gemidos, sente sobre o seu corpo um corpo coberto de raiva, é forçada a ter sexo com uma sombra que em altas horas da madrugada percorre as ruas em peditórios submersos na maré, o homem adormece sobre o seu corpo, ela chora, e as lágrimas já não lágrimas, as lágrimas o rio que ela pela manhã olha enquanto percorre os socalcos, pega no corpo do marido sacode-o para o lado como se fosse uma mosca em desespero, e permanece de pernas abertas a olhar as frestas da parede.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

21 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:37

Obliquamente encosto-me às palavras

Que vou semeando nos meus olhos

E quando das palavras se constrói uma frase

A frase enterra-se nos meus braços

 

Mas sem antes passar pelos meus lábios

Enrolar-se no meu cigarro…

Misturam-se as palavras e o fumo

E o texto alicerça-se na janela para o mar

 

Obliquamente encosto-me às palavras

Que vou semeando nos meus olhos

Mas até as palavras começam a escassear

E sem palavras não frases

 

E eu não sei viver sem palavras

Que em frases

Me alimentam e não me deixam morrer…

 

Tirem-me tudo

Ponham-me na prisão…

Mas não me tirem as frases

Não me ausentem das palavras.

 

 

Luís Fontinha

21 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:01

Só preciso das tuas mãos de algodão

E dos teus lábios húmidos da manhã

Não preciso de bens matérias

Não preciso de nada obrigado

 

Preciso que me deixem em paz

Sossegado

 

Não preciso de dinheiro

Para ter o que preciso

E preciso do mar

E não preciso de juízo…

 

Porque neste País à beira mar ancorado

É preciso não ser maluco

Neste País tudo doido

Começando por quem nos tem governado

 

E este País adormecido

Dependente do xanax

Submetido ao prozac…

Só preciso das tuas mãos de algodão

 

E dos teus lábios húmidos da manhã

Não preciso de nada obrigado

Obrigado senhores governantes

Por eu ser tão feliz

 

Por eu ser tão desgraçado…

 

 

Luís Fontinha

21 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:44

(Hoje dei-me conta que estou a mais neste País, hoje percebi que a angustia que sinto ao acordar, hoje percebi que a minha nunca adaptação, tudo isso, tudo isso porque eu nunca devia ter vindo de Angola. Hoje percebi que preciso de regressar urgentemente à minha terra, e mudar de vida. Logo que tenha uma oportunidade de regressar, acreditem que não hesitarei um único segundo; decidi regressar a Angola)

 

Vou à procura de mim em todas as ruas da cidade, e todas as ruas da cidade encerradas para obras, reabrirmos o mais breve possível, fim de linha, eu cansado e com o camuflado a pingar lágrimas, sangue que aos poucos se evapora da minha pele, e nos meus olhos, nos olhos passeiam-se grãos de areia que na praça de táxis esperam pela minha sombra, e onde está a tua sombra, a minha, sim, sim a tua sombra, a minha sombra longe do meu corpo, a minha sombra junto ao capim, e o teu corpo, o meu corpo aos poucos desce pelos socalcos do douro, sinto o cheiro do rio, sentes, sim sinto, e depois, e depois já sem forças, e depois vejo o meu corpo despido do camuflado, vejo o meu corpo a afundar-se no rio, e o rio, o rio engole-me, acreditas que o rio sempre me quis, e o capim, o capim adormece no silêncio da noite, e sabes, e sabes que as gaivotas brincam com a minha sombra.

 

Vou à procura de mim em todas as ruas da cidade, vais, vou, ainda te recordas do menino que acreditava voar, sim claro, e todas as noites olho pela janela, e sabes, sim diz, vejo sempre o mesmo cavalo branco com uma mulher vestida de branco, eu menino ao portão do quintal a fabricar desejos, e ela, ela passava por mim, ela passava por mim e nem se dava conta que o meu corpo lá, o meu pequenino corpo pendurado no portão, o meu corpo ainda invisível, o meu corpo transparente à espera da chuva do fim de tarde, vou à procura de mim e não me encontro, eu não lá, o meu corpo deve passear-se por alguma lixeira de Belém, talvez, talvez agora âncora do navio que me trouxe, vieste de navio, sim, sabes, não, diz, foi a viagem mais linda que fiz, o mar, eu dentro do mar à procura da terra prometida, e os camuflados, que tem, os camuflados levavam-me a passear pelo barco e davam-me presentes, vinham felizes, vinham para casa, eu, tu, e eu triste, a minha casa lá, a minha sombra lá, lá junto ao capim em brincadeiras com as gaivotas.

 

E todas as ruas da cidade encerradas para obras, reabrirmos o mais breve possível, fim de linha, aguarde um momento por favor não desligue, tim tim tim, só mais um momento, aguarde por favor, tim tim tim, só mais um momento, não desligue, e o meu corpo onde andará hoje, a esta hora, hoje agora, só mais um momento, não desligue aguarde, tim tim tim, só mais um segundo, peço desculpa pela demora, não faz mal, lamentamos mas o seu corpo não cá…

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

21 de Maio de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:47

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