Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

03
Jun 11

Que o meu corpo liquefeito fique electrão, em cabeçadas quânticas à volta do núcleo, a minha mão pendurada nos lábios da lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança sorri para mim, e eu, e eu, olá menino porque te ris,

 

- Tens cara de palhaço, pareces o palhaço pobre que vi no circo em Luanda,

 

O paquete à minha espera, subo silenciosamente as escadas, e quando chego ao cimo, no patamar, olho para as pessoas e vejo as lágrimas da despedida, e de mim, e de mim ninguém na minha partida, e de mim ninguém na minha chegada, tenho cara de palhaço, pareço uma palmeira que espreita à janela com os olhos nus, a roupa dispersa no pavimento, a Fátima pequenina como uma roseira ao meu lado a brincar com uma boneca, a Fátima que ficou prisioneira do cacimbo, e dizem que a sua sombra caminha pelas ruas de Vila Nova de Famalicão, o paquete começa a esfumar-se na manhã de embarque, e sabes,

 

- Será longe Vila Nova de Famalicão

 

E sabes, o paquete começa em roncos adormecidos levado pela mão de um rebocador, e aos poucos ele mergulha a cabeça na areia e da Fátima apenas silêncios, o mar em tosse convulsa começa a espreguiçar-se na tarde, cresce, cresce, cresce e a terra engolida pela boca da saudade,

 

- Tens medo da água, maricas

 

E a saudade aumenta de peso, aumenta de tamanho, e em curvas apertadas as coxas da neblina quase que tocam o céu, céu e água, vómitos junto ao varandim e uns calções sentados no soalho a fazer desenhos com os olhos, a Fátima algures por aí, gorda, uma locomotiva de filhos que de ano a ano circulam pelos carris da infância, e eu continuo sentado no soalho a fazer desenhos com os olhos, tenho cara de palhaço pobre, I have a dream,

 

- A lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança, a Fátima das criancices de Luanda, pegue na minha mão, e na terra que aos poucos nos engole, emerge, emerge a noite sem estrelas.

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

3 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:21

Encantam-me os desencantos da manhã

O abrir da janela e ao fundo da rua

O mar

A manhã despida nua

 

E na espuma da ondas

O silêncio de estar sentado

O desencanto das ruas em construção

A sombra que me aperta o peito amargurado

 

Um peso de escuridão

Dentro do meu corpo suspenso num baloiço

O meu corpo tocado pelo vento

O meu corpo um coração que já não oiço

 

Ferido velho espetado num sorriso de mendigo

E da manhã vejo crescer a tempestade

As nuvens que se deitam na minha boca

A manhã em desencanto sem vaidade

 

A manhã ao fundo da rua

E num candeeiro uma sombra de luz emagrecida

Esqueletos da noite

Esqueletos sem vida.

 

 

Luís Fontinha

3 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:48

Uma simples côdea de pão, um cordel suspenso no pescoço, três cigarros na algibeira, e Tony carrancudo percorria as feiras do povoado, pegado à sua sombra um rafeiro embrulhava-se com os silêncios do caminho para o rio, e das giestas acabadas de acordar sorriam palavras que se ouviam nas encostas dos seios dela, íngremes, bofetadas na face do peito, as coxas presas no cais, e o corpo flutuava como se fosse uma gotinha de algodão,

 

- Foi bom

 

Maravilhoso. Foi bom, maravilhoso, foi bom mas a tarde aos poucos extingue-se na algibeira, e dos três cigarros nada, por entre as paredes encardidas, sumiram-se nas fendas de um sorriso, e talvez tenham passado a parede, e do outro lado, do outro lado o Zé a convencer-me que fixando um ponto na parede, fixando, fixando… passava a parede,

 

- E os meus cigarros do outro lado à espera das loucuras do Zé, e o Zé em finíssimos fios de seda emagrecia, tornava-se invisível, e quando chamava por ele, Zé, onde anda o Zé, o Zé no compartimento contíguo a olhar o rio e a contar os petroleiros rumo ao infinito, e o infinito encalhado entre duas rectas paralelas, os comboios deitados de barriga para o ar,

 

E os seios dela estacionados no meu peito pesavam e agarravam-se a mim como o musgo de pinheiros ranhosos no recreio da escola, fazia-me comichão no corpo, e a cada pontapé numa bola um vidro que se finava, quando é o funeral, logo pelas seis junto ao quiosque, e o quiosque durante a noite mudava de dormitório, uma simples côdea de pão, um cordel suspenso no pescoço, três cigarros na algibeira,

 

- Foi bom

 

Maravilhoso. Em cada gemido uma pétala que se espetava junto ao pescoço, dois dentes marcados, e uma rosa entranhava-se no umbigo, e no púbis um plátano agarrava-se às gaivotas que no final do dia se confundiam com serpentes abraçadas ao mastro de um veleiro pasmado à espera da maré,

 

Maravilhoso.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

3 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:50

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