Que o meu corpo liquefeito fique electrão, em cabeçadas quânticas à volta do núcleo, a minha mão pendurada nos lábios da lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança sorri para mim, e eu, e eu, olá menino porque te ris,
- Tens cara de palhaço, pareces o palhaço pobre que vi no circo em Luanda,
O paquete à minha espera, subo silenciosamente as escadas, e quando chego ao cimo, no patamar, olho para as pessoas e vejo as lágrimas da despedida, e de mim, e de mim ninguém na minha partida, e de mim ninguém na minha chegada, tenho cara de palhaço, pareço uma palmeira que espreita à janela com os olhos nus, a roupa dispersa no pavimento, a Fátima pequenina como uma roseira ao meu lado a brincar com uma boneca, a Fátima que ficou prisioneira do cacimbo, e dizem que a sua sombra caminha pelas ruas de Vila Nova de Famalicão, o paquete começa a esfumar-se na manhã de embarque, e sabes,
- Será longe Vila Nova de Famalicão
E sabes, o paquete começa em roncos adormecidos levado pela mão de um rebocador, e aos poucos ele mergulha a cabeça na areia e da Fátima apenas silêncios, o mar em tosse convulsa começa a espreguiçar-se na tarde, cresce, cresce, cresce e a terra engolida pela boca da saudade,
- Tens medo da água, maricas
E a saudade aumenta de peso, aumenta de tamanho, e em curvas apertadas as coxas da neblina quase que tocam o céu, céu e água, vómitos junto ao varandim e uns calções sentados no soalho a fazer desenhos com os olhos, a Fátima algures por aí, gorda, uma locomotiva de filhos que de ano a ano circulam pelos carris da infância, e eu continuo sentado no soalho a fazer desenhos com os olhos, tenho cara de palhaço pobre, I have a dream,
- A lua quando a noite desce até ao rio, que o meu corpo liquefeito arrefeça quando da manhã uma criança, a Fátima das criancices de Luanda, pegue na minha mão, e na terra que aos poucos nos engole, emerge, emerge a noite sem estrelas.
(texto de ficção)
Luís Fontinha
3 de Junho de 2011
Alijó