Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

05
Jun 11

Mãe, as dálias emagrecem, porquê mãe, e o senhor cansado de olho no rapaz que se pendurava na cerejeira, espreitava-o pelos buraquinhos dos ramos, o miúdo mais parecido com um primata, galgava até ao céu os braços da árvore aprisionada ao chão do quintal. Um cão corpulento suspirava na sombra de uma bananeira, e o senhor cansado de enxada na mão gritava com o miúdo, a professora de cana-da-índia em vergastas nas orelhas dos desatentos, o miúdo empoleirado no telhado, e das cerejas acordavam silêncios, tremiam-lhe as pernas, as mãos começavam a descansar e os ramos aos poucos ficavam esquecidos, o miúdo na rua da frente e os ramos na retaguarda, o senhor cansado enfurecido com os óculos e de cigarro ao canto do lábio,

 

- Desce já malvado

 

Malvado seja Deus, e o miúdo em dois passos a trás, toma balanço, e num salto de lince começa a voar e aterra precisamente junto ao cão corpulento, estou safo diz ele, aqui o velho nunca me vai fazer mal,

 

- E agora apanhei-te seu malandro

 

Era o apanhas, deu corda às sapatilhas e nunca mais ninguém o viu, as dálias emagrecem, e porquê mãe, e o velho enraivecido começa a perseguir a sombra do miúdo, mas a distância começa a envolver-se com a tarde, as calças começam a descer-lhe até aos tornozelos, e a enxada agarra-se aos torrões espalhados pelo quintal, suspira,

 

- Desisto… não consigo correr mais

 

O cigarro desfaz-se e um dos dentes sorrateiramente trinca o lábio, as dálias olham-no e conforme o movimento dos ponteiros do relógio de braços abertos na parede da cozinha, as dálias diminuem e tornam-se invisíveis, escondem-se nos calções do miúdo em fuga, e porquê mãe, porque emagrecem as dálias, o corpulento cão faz troça da figura do velho, calças descidas e pernas a afagar o senhor cansado, e pensava, maldito miúdo, grande malandro,

 

- A terra é de quem a trabalha, mas o fruto, o fruto é de quem o colhe,

 

Maldito miúdo.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

5 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:24

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