Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

07
Jun 11

S. Tomé e Príncipe a entrar-me pelos olhos, rumo à garganta e quando me apercebo, a paisagem mergulhada nos meus lábios, oiço as gaivotas penduradas no navio, e as canoas aos poucos tomam-nos de assalto, bugigangas ao preço da chuva, búzios em que se podia ouvir o mar e eu sentado numa esplanada junto ao Tejo, nas minhas costas o museu dos Coches de portas fechadas, e de vez em quando o roncar do vinte e oito em linha recta para Moscavide, peças de chita estampadas à volta de um cartão, colares de missangas, e eu no chão a fazer desenhos e a imaginar como seria a ilha, e tive medo de descer do navio e caminhar cento e cinquenta metros sobre o mar, e os camuflados levavam-me para a piscina do navio, e hoje percebo que no olhar dos camuflados existia o sorriso do regresso a casa, e no meu rosto, em mim as lágrimas da partida,

 

- Quinze anos depois ele sentado na esplanada, sobre a mesa um livro que aproveitava a tarde para dormir, e ele em minutos distantes com a chávena na mão a olhar a o padrão dos descobrimentos, fotografava mentalmente as pessoas que corriam na rua, e via nas mulheres a rotação da lua, os comboios a cruzarem-se em Belém, e até ele o cheiro do rio a caminhar lentamente para o mar,

 

Em mim as lágrimas da partida, e na noite o baloiço do navio, um balançar inconstante, e amargo, e depois adormecia e sonhava que corria nas ruas de Luanda pela mão do meu pai, e eu cansado, e nunca mais chegava ao fim, sentia que a viagem não tinha término, e hoje, hoje ainda sou uma criança em viagem que aguarda pelo regresso, o meu corpo cá, mas algo de mim circula pelo oceano, e mergulha, e vai ao fundo, e volta à tona,

 

- E quando o rio abraça o mar nas minhas mãos as algas agarram-se ao meu peito e que me puxam para o infinito, atravesso a linha, vou até à margem e sento-me, cruzo as pernas, entrelaço as mãos e vejo um navio silenciosamente que corre em direcção ao porto de abrigo, junto às grades uma criança a dizer-me adeus, o corpo do miúdo que quinze anos antes suavemente chegava a Lisboa,

 

Em mim as lágrimas da partida, e vai ao fundo, e volta à tona, e o pouco que resta da criança em círculos concêntricos na crista das ondas, uma saudade impressa numa finíssima folha de papel agarrada a sílabas dispersas, e este navio não pára de gemer e balançar na noite, acordado, olho o tecto do camarote, e pergunto-me, e pergunto ao meu pai,

 

- Porquê pai?

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

7 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:04

Cacimbo

Ao longe a sanzala iluminada de sonhos

As minhas pernas arquejam na sombra das palancas

E nas ondas da tempestade

 

Cansa-se a manhã acabada de nascer

Deito-me enrolado ao capim

Coloco as mãozinhas no peito

E em sorrisos intemporais

 

Oiço o mar que me chama

O mar que me ama

Cacimbo

Escondo-me nas árvores que dormem junto à Baía

 

E sentado numa cadeira

Conto religiosamente todos os carros que me olham

Sinto o cheiro impregnado na pele da ilha do Mussulo…

E nos meus lábios prende-se um cigarro

 

O cigarro que me dá vida e ilumina

Quando chega a noite

As luzes da cidade abrem em pequenos silêncios os olhos

E o cacimbo entra-me no corpo e amolece-me os ossos…

 

 

Luís Fontinha

7 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:10

A miúfa pendurada nos meus olhos quando ao meu lado direito um plátano pregava um sermão aos transeuntes, cansado de os ver apressados pela rua parecendo bengalas suspensas na dentadura postiça do meu vizinho, sabes que horas são, si lá, não sabes, nem sei que dia é hoje quanto mais que horas são, o meu vizinho puxa de um cigarro, enrola-o na língua, mistura-o com a saliva e de labareda em punho, a luz da sala acesa, o fumo engasga-se junto às panelas que na cozinha esperam pela chegada da Silvina, e a Silvina nos terrenos com a focinheira na terra, as cabras sobem e atravessam os muros da tapada, a terra dispersa engole o cansaço da velhice, e no telhado a brancura da neve, as pernas empobrecidas e das mãos calejadas da enxada o sorriso da erva em banhos de imersão, o palheiro, o canastro entupido de milho até à porta de entrada, na eira três galinhas e um porco passeiam-se junto ao mar, Belém, Cascais,

 

- O Tejo preso a uma âncora, e o Tejo não foge, o Tejo quietinho no cantinho esquerdo da eira, o neto brinca com pequenas pedras, e de vez em quando, de vez em quando atira-as contra o areal de milho, perde o olhar dentro no feijão estacionado entre o milho,

 

E Cascais, Belém, Cais de Sodré, e putas, e a Silvina já noite, pelo meio da sombra carrega à cabeça erva em gemidos solitários, os coelhos com fome, as cabras à sua frente de lanterna na cabeça, o caminho misturado de cascalho e tojos, e foda-se,

 

- Piquei-me,

 

E na cozinha as panelas esperam a Silvina, descarrega a erva como se fosse uma burra de carga, no quarto o marido espetado no tecto à espera que lhe mudem a fralda, o cheiro a merda, a merda da vida, a vida a esfumar-se pela claridade da candeia, o cheiro intenso do azeite encosta-se nas paredes do corredor, e pensa,

 

- Que saudades de ir ao terreiro, baixar as calcinhas até aos tornozelos, e mijar docemente como uma semente de malmequer, o frio intenso no rabo, e do quarto uma voz gritante,

 

Silvina, estou cheio de merda.

 

 

(texto de ficção)

7 de Junho de 2011

Luís Fontinha

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 01:11

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