Substituindo as engrenagens do peito dá-se conta que a tarde range como carruagens sobre os carris da solidão, veja lá o senhor se isto tem cabimento, a tarde ainda a meio, e já a dona Elvira suspira silêncios na cama, enrolada nos lençóis que na loja do chinês adquiriu quando ainda a saúde vivia dentro do corpo, e nas pernas a velocidade era constante, penteava-se todos os dias depois de lavar a fachada do rosto numa bacia que estava sempre poisada em cima de uma mesa de pedra debaixo da macieira, e a macieira a única habitante do quintal com dez mil metros quadrados, frente para o rio, e bem longe, mesmo no canto do extremo para a encosta, uma rocha onde ela se sentava nas horas intermináveis do dia,
- Dois filhos, o marido à noite saiu de casa para comprar cigarros, e trinta anos depois, trinta anos depois nem ele nem cigarros, e nem filhos, os filhos em corridas diárias, trabalho casa, casa fim-de-semana na praia e já se esqueceram que ainda eu viva, enrolada nos lençóis comprados no chinês, e só com a noite no meu peito, e dos netos apenas sombras numa fotografia sobre o frigorifico,
Veja lá o senhor se isto tem cabimento, a roda da vida em constante rotação e a desgraçada da dona Elvira desfasada com o movimento pendular dos anos, de que lhe servem os dois filhos, os netos,
- E um dia ele vem, um dia ele entra pelo buraquinho da fechadura na companhia dos cigarros,
Substituindo as engrenagens do peito dá-se conta que a tarde range como carruagens sobre os carris da solidão, a rocha onde se sentava aos poucos comida pelo vento e a bacia debaixo da macieira na garganta das maçãs, a Elvira absorvida pelas frestas da casa que na volta dos ponteiros do relógio vergava como um corpo doente, veja lá o senhor se isto tem cabimento, filhos, netos, e no funeral apenas a companhia de um rafeiro que se deitava durante a noite no tapete da porta de entrada,
- Um dia eles vêm visitar-me, um dia vêm, coitados… têm lá a vida deles…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
8 de Junho de 2011
Alijó