Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

10
Jun 11

Na manhã as nuvens em frente ao sorriso das garças, no rio finíssimos silêncios abraçados a ela, e das mãos da minha mãe uma rosa olha-me, e eu, sinto que nunca mais a vou ver, agarra-me como se estivesse a segurar os ramos da cerejeira do quintal, nos olhos pequeninas gotinhas de orvalho, e em soluços,

 

- Vai com Deus meu filho,

 

O meu pai engasgado pelo cigarro,

 

- Boa sorte,

 

E nem sorte nem Deus na minha companhia, lanço um adeus à cerejeira, poiso a mão na cabeça do rafeiro, e quando passo junto ao matulão prego-lhe um sorriso, ele lambe-me a mão, e eu, eu,

 

- Juizinho senhor Noqui,

 

A mala sem peso, pouca coisa e meia dúzia de livros de A. Lobo Antunes, e em poucas horas eu sentado na Baía de Luanda a olhar o mar, dentro de mim o menino que procura nas ruas o cheiro a catinga e as sombras de um papagaio de papel, dentro de mim o silêncio da terra acabada de tomar banho, dentro de mim o menino de bibe, o menino que se pendurava nos ramos da mangueira,

 

- O menino dá, o menino dá a sopa,

 

E a colher inclinava-se a quarenta e cinco graus e trinta segundos, e pimba, o bibe entalado de sopa, e das mãos peganhosas vinha até mim o cheiro do fim de tarde, olho o mar, puxo de um cigarro, fumar mata, e eu teimosamente fumo, e teimosamente a morte nada comigo, por enquanto, no fumo oiço os sorrisos das garças, oiço o roncar de um petroleiro apressado rio acima, fechos os olhos e vejo a minha mãe sentada na cozinha, e de terço na mão, reza, reza por mim, mas sinto que nunca mais a vou ver,

 

- Vai com Deus meu filho,

 

- Boa sorte.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

10 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:45

Alice embrulhava-se nos socalcos virados para o rio, o Pedro que começava a gatinhar dentro de uma grade de madeira, e no tornozelo um cordel para não se perder no xisto incandescente das manhãs de verão, olhava a paisagem, e com os dedinhos fazia desenhos nas folhas verdejantes das videiras, sussurrava em soluços, que merda de vida vai ser a minha,

 

- Os meus avós desgastaram os ossos nos socalcos do douro, os meus pais, fotocópias dos meus avós, e eu porra?

 

No bolso Alice transportava uma côdea de pão, duro como cornos, e o Pedro sonhava com refeições à beira mar, peixinho grelhado, marisco, lambia os lábios com dois dedos de conversa, e de vez em quando acenava com as mãozinhas aos barcos que subiam o rio, e as fotografias dos turistas começavam a poisar-se-lhe nos ombros tenros como ramos de oliveira, o comboio em sorrisos para o Pinhão, e notava-se no chilrear dos carris que ele já cansado,

 

- Que merda de vida vai ser a minha, focinho na terra, erguer-me à quatro da madrugada, os anos a passarem, nas mãos os calos da enxada, pesadíssima como chumbo, um casebre miserável e uma ninhada de filhos,

 

E fome. E a fome pendurada na chaminé da casa de Alice, mãe solteira, um filho de cada enxada calejada nos dias de inverno, e na noite, na noite ausentavam-se para as terras de Espanha, sempre se ganha alguma coisa, conferenciava António, e a enxada desaparecia da vida de Alice, ficando apenas os rebentos de angústia para alimentar.

 

Olhava a paisagem, e com os dedinhos fazia desenhos nas folhas verdejantes das videiras, no chão o xisto misturado com as fendas parecendo gargantas à procura de água, do corpo o suor que em pedacinhos de nada mergulhava-se-lhe na roupa e o pó pintava-lhe o cabelo de loiro, malditos socalcos, malditas pedras, Alice emagrecia com a rotação dos dias, e do Pedro apenas pequenos choros,

 

- Os meus filhos fotocópias dos meus bisavós,

 

Do Pedro apenas pequenos choros, do Pedro lágrimas; as lágrimas do vinho.

 

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

10 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 14:11

Que faz o meu corpo neste Portugal? Que faz o meu corpo neste Portugal que desistiu de mim, que prendeu os meus sonhos, que faz o meu corpo neste País, o mesmo País onde eu não sirvo para nada…

 

Pois eu aqui não fico. Não vou ficar e desejo nunca mais regressar.

 

Vou embora com a certeza que nunca devia ter vindo para Portugal. Nunca.

 

E eu não tive culpa, trouxeram-me com seis anos, assisti à queda da ditadura e ao nascimento da liberdade, e que desilusão, o Portugal de hoje não faz sentido, e aqui, aqui recuso-me a ficar.

 

Decididamente vou embora, vou embora com a certeza de nunca mais regressar; nunca.

 

 

Luís Fontinha

10 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:06

Talvez me esperem

Do outro lado do muro

Um finíssimo fio de sémen

Me separa entre o dia e a noite

 

Entre o bem e o mal

Talvez me esperem

Entre a claridade e a escuridão

E de um lado tenho o mar

 

Do outro

A terra árida do sofrimento

O cansaço das manhãs amargas

Que tingem a minha boca de sílabas

 

Talvez me esperem

As sombras das ruas doentes da cidade

Os semáforos que me proíbem os sonhos

Quando o muro se abraça ao meu peito…

 

 

Luís Fontinha

10 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:00

O cansaço apodera-se do meu corpo, o ritmo da escrita aos poucos engasga-se nas minhas mãos trémulas, e eu, definitivamente não sou um gajo de sorte. Dizem que a sorte procura-se, mas comigo ela nada quer.

 

A palavra solidariedade, apenas uma palavra como tantas outras no dicionário, apenas uma palavra, e se eu disser tenho fome, a minha voz perde-se na noite e ninguém a ouve, ou se a ouvem, fingem que não ouvem, mas se um outro prenuncia a mesma frase tenho fome, uma multidão ocorre em seu auxilio.

 

É tudo uma questão de sorte, e às vezes até para se ser miserável é preciso ter sorte, e eu, definitivamente não sou um gajo de sorte.

 

Mesmo que eu grite com um megafone, tenho fome, ninguém, ninguém me ouvirá.

 

Há miseráveis com sorte, mas eu, eu sou um miserável definitivamente sem sorte.

 

Sou definitivamente um gajo sem sorte, e a solidariedade, essa, apenas sei que existe quando abro o maldito dicionário…

 

 

Luís Fontinha

Alijó

10 de Junho de 2011

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:55

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