Um sorriso, não mexe, já está, vê… nas custou nada. Ai não que não custou, custou e muito, custou-me a pose miserável do meu esqueleto, custou-me arreganhar os dentes sem que me apetecesse, porra, custou-me levar com as luzes no focinho, o fato, a gravata, a merda dos sapatos por estrear e a magoarem-me a pontinha dos dedos,
- E não custou nada?
Só mais uma, agora de lado, sorria… já está, vê, é como quem limpa o rabo a bebés, e nunca mais termina a comunhão solene, despir a porcaria do fato e volta a ser ateu, que coisa, livrinho, luvas nas mãos, terço enrolado,
- Foda-se, estou fodido…
Terço enrolado, uma tabuleta com um número pendurada ao pescoço, 03166987, B RH+, nas minhas costas aproximava-se o muro amarelo de vedação, ao longe sentia os carros a passearem sobre a ponte 25 de Abril, e o meu corpo aos poucos escondia-se nas sombras que caminhavam no Regimento de Lanceiros 2, calçada da Ajuda, e eu peço ajuda, e nada, Ajuda nenhuma, padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, e depois do almoço a procissão no final da tarde, falta pouco para voltar a ser ateu, não mexe, já está, seguinte, e nessa noite bebi tanta vodka que me deixou enjoado durante quinze meses, catorzes meses e um de férias, cinco contos por mês, cama e roupa lavada, bebedeira todos os dias,
- Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu,
O senhor vigário vagarosamente, os meus pais e os meus avós, felizes, e eu cambaleando junto às árvores na parada, e o vento era tanto que o meu corpo balançava como uma folha de papel pendurada num sorriso,
- Este filho da puta outra vez bêbado,
E se fosse só bêbado, as sombras formadas, os holofotes ligados, um sorriso, já está, lindo, e o nosso pelotão a mastigar côdeas de pão, um passo à frente, dois à retaguarda, e puta que te pariu que nunca mais me pões os olhos em cima,
- Meu tenente os do quinto pelotão são todos loucos, eu dou-lhes a loucura, daqui a pouco vão todos com a focinheira para a fossa da merda,
Começava a não suportar o peso do fato, mas livrai-nos do mal, e quando oiço ide em paz e o senhor vos acompanhe, fim, destroçar, toca a correr para a caserna, desembaraçar-me dos trapos militares e, almoço em família, só falta a procissão, e comunhão feita, novamente ateu, novamente em liberdade, mas antes da procissão ainda tive tempo de me embebedar com o capitão e o sargento, vaguear pelas ruas de Lisboa e adormecer num banco de madeira em Santa Apolónia,
- Não mexe, um sorriso, isso lindo, já está, vê… não custou nada,
Felicidades na vossa vida civil.
(texto de ficção)
Luís Fontinha
12 de Junho de 2011
Alijó