Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

12
Jun 11

Um sorriso, não mexe, já está, vê… nas custou nada. Ai não que não custou, custou e muito, custou-me a pose miserável do meu esqueleto, custou-me arreganhar os dentes sem que me apetecesse, porra, custou-me levar com as luzes no focinho, o fato, a gravata, a merda dos sapatos por estrear e a magoarem-me a pontinha dos dedos,

 

- E não custou nada?

 

Só mais uma, agora de lado, sorria… já está, vê, é como quem limpa o rabo a bebés, e nunca mais termina a comunhão solene, despir a porcaria do fato e volta a ser ateu, que coisa, livrinho, luvas nas mãos, terço enrolado,

 

- Foda-se, estou fodido…

 

Terço enrolado, uma tabuleta com um número pendurada ao pescoço, 03166987, B RH+, nas minhas costas aproximava-se o muro amarelo de vedação, ao longe sentia os carros a passearem sobre a ponte 25 de Abril, e o meu corpo aos poucos escondia-se nas sombras que caminhavam no Regimento de Lanceiros 2, calçada da Ajuda, e eu peço ajuda, e nada, Ajuda nenhuma, padre nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, e depois do almoço a procissão no final da tarde, falta pouco para voltar a ser ateu, não mexe, já está, seguinte, e nessa noite bebi tanta vodka que me deixou enjoado durante quinze meses, catorzes meses e um de férias, cinco contos por mês, cama e roupa lavada, bebedeira todos os dias,

 

- Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu,

 

O senhor vigário vagarosamente, os meus pais e os meus avós, felizes, e eu cambaleando junto às árvores na parada, e o vento era tanto que o meu corpo balançava como uma folha de papel pendurada num sorriso,

 

- Este filho da puta outra vez bêbado,

 

E se fosse só bêbado, as sombras formadas, os holofotes ligados, um sorriso, já está, lindo, e o nosso pelotão a mastigar côdeas de pão, um passo à frente, dois à retaguarda, e puta que te pariu que nunca mais me pões os olhos em cima,

 

- Meu tenente os do quinto pelotão são todos loucos, eu dou-lhes a loucura, daqui a pouco vão todos com a focinheira para a fossa da merda,

 

Começava a não suportar o peso do fato, mas livrai-nos do mal, e quando oiço ide em paz e o senhor vos acompanhe, fim, destroçar, toca a correr para a caserna, desembaraçar-me dos trapos militares e, almoço em família, só falta a procissão, e comunhão feita, novamente ateu, novamente em liberdade, mas antes da procissão ainda tive tempo de me embebedar com o capitão e o sargento, vaguear pelas ruas de Lisboa e adormecer num banco de madeira em Santa Apolónia,

 

- Não mexe, um sorriso, isso lindo, já está, vê… não custou nada,

 

Felicidades na vossa vida civil.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

12 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:16

Flutua nas minhas veias o desejo de partir, e enquanto fabrico cálculos complexos no meu cérebro as gaivotas correm para o mar, os pequeníssimos moluscos que se agarram às rochas, aos poucos, desistem e deixam-se levar pela gravidade da tempestade, caiem no mar e enterram-se na água como corpos voando sobre as nuvens, mergulham e fundem-se na areia finíssima do pavimento térreo do oceano, as ondas em crista sobrepõem-se aos silêncios da noite, e um veleiro é empurrado por uma mãozinha de vento rumo à ilha que na garganta da manhã cospe pedacinhos de fogo, dos pulmões afagados pelo nevoeiro emerge a sombra da maré, e eu em passos adormecidos encosto-me ao candeeiro que treme no olhar do jardim, do outro lado da rua, do outro lado da rua a relva de algodão doce, as rosas em beijos desgovernados, as formigas carregando pesadíssimas migalhas de pão, ela dorme e eu olho-a coberta por lençóis de seda e com desenhos abstractos, respira e sonha, e do espelho do quarto o meu esqueleto desengonçado preso com finíssimos arames, o crucifixo na parede ajuda-me, deita-me a mão e alguns dos meus ossos voltam às cartilagens originais, não tenho dores, apenas sono e vontade de me deitar junto a ela, enrolar-me no nos seus lábios e olhar a janela pendurada no quarto andar,

 

- Porque me olham as mimosas,

 

E se eu abrir a janela e lançar-me em queda livre, será que o vento me leva para o mar, e as mimosas, porque me olham?

 

Por entre as pedras o silvado vergado pelo peso das amoras bravias, um lagarto junto à parede refresca-se no sol escaldante da tarde, na vinha um coelho que brinca com frestas de xisto e corre para a ribeira, e eu penso, aqui éramos felizes,

 

- O cheiro das mimosas entranha-se na minha pele macia,

 

E eu indeciso, acordo-a, deixo-a dormir, dou-lhe um beijo ou, ou simplesmente espero que os ponteiros do relógio se apaguem quando o sol adormecer, cruzo os braços, e recordo as tardes quando brincava na eira em Carvalhais, deitava-me no chão e olhava o milho pregado às sombras do canastro. E sonhava que um dia caminharia sobre o mar e que um dia regressaria a Luanda…

 

Ela acorda, encosta a língua no lábio superior, sorri, e num suspiro incandescente diz-me,

 

- Amor, que estranho…, sonhei com mimosas penduradas na janela.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

12 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 18:28

O cansaço da noite

Abraça-se ao meu peito

Milímetros de sol poisam na minha mão

E sou observado pelo sorriso das cerejas,

 

O perfume alicerça-se-me nas narinas entupidas pelos cigarros

Retiro-a desajeitadamente da árvore suspensa na manhã

E nos meus lábios sinto a sua pele gostosa e macia

Perco-me em minutos, saboreio-a na minha boca,

 

Trinco-a e atiro o caroço contra as nuvens

Penso no rio quando me sentava a contar petroleiros na tarde

E agora percebo que o meu quintal

É um silêncio de navios rumo ao mar…

 

 

Luís Fontinha

12 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:53

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