É que não se cala este pássaro pendurado na cerejeira e canta que começa a enjoar-me, família completa, ele a mulher e três filhos, habitantes do meu quintal em forma de rectângulo, um paraíso fiscal, juntinho ao mar, canta, canta e ainda não acordou a manhã e já ele dá à goela, e tenho dias que me irritam os pássaros, e tenho dias que me irritam as árvores, e tenho dias que a minha própria sombra me irrita,
- O relógio de parede com a boca aberta e na sala de quinze em quinze minutos a conversa do costume, as ave marias, o silêncio do meu avô Domingos em farda de gala, novo e com o machimbombo colado no peito, do outro lado, do outro lado o meu avô Francisco, novo e morreu novo, e eu, e eu no meio deles pergunto-me o que faço sentado no sofá a olhar para uma parede nua, onde um ponto invisível me olha, onde um ponto invisível me quer devorar, e nas minhas costas eu sentado sobre um blindado e ao longe, ao longe a ponte, o cheiro das gaivotas acabadas de acordar, e enjoa-me,
O cantar dos pássaros no fim de tarde, a vodka em pequeníssimos goles saltitando na boca, curva à direita, desce a rabina e estômago, e a cabeça a rodar noventa graus no sentido inverso dos ponteiros do relógio, na parede dezanove horas, sete pancadas e nova rotação, mudança de rumo, trinta graus a estibordo, e afundo-me sobre a alcatifa,
- O avô Francisco pega-me num braço, o avô Domingos distraído a passear machimbombos nas ruas de Luanda, e o que está sobre o blindado entretêm-se a contar os carros que caminham na ponte, o avô Francisco é forte, o avô Francisco quase dois metros, mas o meu corpo começa a encolher e desaparece, esconde-se debaixo do sofá e mistura-se com as formigas,
Quem diabo tem formigas em casa? Eu.
A milu, o cacá e a tv, e a tv grávida de dois meses, a tv nos enjoos matinais, a vodka evapora-se da garrafa, o terreno íngreme com vista para o rio, nos olhos começam a passar imagens em duplicado, dois Franciscos, dois Domingos, uma ponte e dois blindados enferrujados à porta de entrada, estou bêbado,
- E tenho dias que me irritam os pássaros, e tenho dias que me irritam as árvores, e tenho dias que a minha própria sombra me irrita…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
13 de Junho de 2011
Alijó