Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Jun 11

É que não se cala este pássaro pendurado na cerejeira e canta que começa a enjoar-me, família completa, ele a mulher e três filhos, habitantes do meu quintal em forma de rectângulo, um paraíso fiscal, juntinho ao mar, canta, canta e ainda não acordou a manhã e já ele dá à goela, e tenho dias que me irritam os pássaros, e tenho dias que me irritam as árvores, e tenho dias que a minha própria sombra me irrita,

 

- O relógio de parede com a boca aberta e na sala de quinze em quinze minutos a conversa do costume, as ave marias, o silêncio do meu avô Domingos em farda de gala, novo e com o machimbombo colado no peito, do outro lado, do outro lado o meu avô Francisco, novo e morreu novo, e eu, e eu no meio deles pergunto-me o que faço sentado no sofá a olhar para uma parede nua, onde um ponto invisível me olha, onde um ponto invisível me quer devorar, e nas minhas costas eu sentado sobre um blindado e ao longe, ao longe a ponte, o cheiro das gaivotas acabadas de acordar, e enjoa-me,

 

O cantar dos pássaros no fim de tarde, a vodka em pequeníssimos goles saltitando na boca, curva à direita, desce a rabina e estômago, e a cabeça a rodar noventa graus no sentido inverso dos ponteiros do relógio, na parede dezanove horas, sete pancadas e nova rotação, mudança de rumo, trinta graus a estibordo, e afundo-me sobre a alcatifa,

 

- O avô Francisco pega-me num braço, o avô Domingos distraído a passear machimbombos nas ruas de Luanda, e o que está sobre o blindado entretêm-se a contar os carros que caminham na ponte, o avô Francisco é forte, o avô Francisco quase dois metros, mas o meu corpo começa a encolher e desaparece, esconde-se debaixo do sofá e mistura-se com as formigas,

 

Quem diabo tem formigas em casa? Eu.

A milu, o cacá e a tv, e a tv grávida de dois meses, a tv nos enjoos matinais, a vodka evapora-se da garrafa, o terreno íngreme com vista para o rio, nos olhos começam a passar imagens em duplicado, dois Franciscos, dois Domingos, uma ponte e dois blindados enferrujados à porta de entrada, estou bêbado,

 

- E tenho dias que me irritam os pássaros, e tenho dias que me irritam as árvores, e tenho dias que a minha própria sombra me irrita…

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

13 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:41

O Domingo aos poucos arregalava os olhos para o começo da manhã de Verão, na freguesia do Carmo o silêncio das 7:30 horas, Mafalda a parteira de serviço encharcada em suor, e na azafama da maternidade grunhia sílabas que no corredor passeavam nos bolsos do pai pendurado nos nervos,

 

- Puxe, mais um esforço, está quase…

 

E os três quilos e seiscentos gramas entupidos no cacimbo,

 

- Está quase… a cabeça já cá canta…

 

A cabeça, os olhos, um jeitinho e temos pernocas à vista, é um lindo menino, lindo menino eu, conversa, somos todos iguais, pele engelhada, ensanguentados como se tivéssemos caído a um poço de merda, berros insuportáveis, olhos suspensos em dois palitos, os dentes sobre a mesa-de-cabeceira, e enrolado num trapo levam-me para o banho, mas antes, mostram o engelhado à mãe babada, e o pai suspirava de alívio, é um menino,

 

- Ainda nem tempo tive de olhar pela janela e já me estão a atirar água ao focinho,

 

Mafalda desenha-lhe uma cruz invisível no peito e coloca-lhe uma etiqueta no pulso para não se perder no capim, a parturiente no cansaço dos três quilos e seiscentos gramas joga à macaca na missão de S. Paulo, desenha um sorriso na boca da irmã Francisca e adormece,

 

- Estes miúdos são insuportáveis e não se calam, todos aos berros como se fossem uma orquestras de goelas esfomeadas,

 

Sílabas que no corredor passeavam nos bolsos do pai pendurado nos nervos, os cigarros intermináveis fundiam-se no começo da manhã de Domingo, na ilha do Mussulo esperavam-no os amigos com a sombra das Cucas, e do arroz de marisco um camarão com a cabeça de fora e numa vozinha de maré embalada pelo vento,

 

- É um menino.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

13 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:56

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