O silêncio que o puxa, a solidão que o amarra, a água gélida da fonte da gricha quando do inverno descia na noite a geada, as escadinhas em vidro cerrado à espera do pequeno-almoço, torradas, leite e água a ferver, o gelo aos poucos emagrecia e em minutos o acesso à rua, a casa um paiol em ruínas e de fresta em fresta o cobertor pendurado na parede para enganar o frio, tomar banho apenas na bacia de plástico, e da retrete sempre entupida o cheiro da saudade de Luanda,
- E na minha primeira ignorância, os flocos de neve encaixavam-se lentamente nas finíssimas ranhuras do paralelo, e eu perguntava-me, o que é isto, o meu pai pacientemente explicava-me que era neve, neve, eu apenas sol, cacimbo, neblina e chuvas desgovernadas que cessavam repentinamente, pego na caixa de sapatos vazia, encho-a de neve e espalho-a sobre a braseira, e a braseira em segundo morre, causa da morte a neve, e eu desconhecia que a neve matava, eu apenas sol, cacimbo, neblina, chuvas desgovernadas e mar,
Em frente à janela a velha pensão Palmira, a bisavó Palmira que os anos lhe comeram os ossos, os anos que também a ele lhe comem os ossos, e sempre de negro a tia Armanda a comandar os tachos e as panelas como se fossem uma orquestra, as paredes cansadas, os pratos submergidos na mágoa dos caixeiros-viajantes, o homem da perna de pau aos saltinhos subindo os degraus de madeira até ao segundo andar, e ele à janela a contar os carros que caminhavam nas ruas desertas de um Domingo de inverno,
- Chuvas desgovernadas e mar, as birras do costume, a questão de sempre, porque não podem os meninos vestir calções, a minha mãe impaciente, eu agoniado com as ceroulas, das sandálias de tiras de couro as botas pesadas como chumbo, as frieiras nas mãos, e eu tão estúpido sem saber o significado de botas, e percebi o que eram quando na calçada da Ajuda desgastava os paralelos, e mar,
No silêncio da manhã a água fresca da fonte da gricha, a bisavó Palmira a comandar a orquestra de sombras, ele abraçado ao frio, a pensão Palmira adormecida num sorriso de lua,
- E quando me apetece recordar a Pensão Palmira, abro a velhinha máquina de costura Sirger, centenária, pego numa folha de papel e começo a fazer bainhas de sílabas…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
14 de Junho de 2011
Alijó