Afio as orelhas e faço-me à estrada. A noite que dorme no silêncio da lua em combustão milimétrica com os ponteiros do relógio, retiro a fotografia que sempre me lembro de estar pendurada na parede da sala, embrulho-a num pano escuro, e fecho-a para sempre dentro da arca de madeira; luto feito, mas dentro de mim existirá sempre o avô Domingos em farda de gala.
O Pinhão começava a adormecer no fim de tarde suspensa nas vindimas em preparação, eu, eu recheado de medo e timidez,
- Que paisagem tão estranha, montanhas desgovernadas, a barragem de Bagauste em construção, e o comboio parecia o gatinhar de uma criança,
E o avô Domingos mais uns meses a passear machimbombos nas ruas de Luanda, o tio António à nossa espera, e o Pinhão, o pinhão à procura das sombras e dos socalcos, a paisagem era-me estranha, eu estranho dentro da paisagem, e da estação, as minhas mãos prisioneiras aos braços da minha mãe, o encontro de irmãos, o reencontro de pedacinhos espalhados entre Portugal e Angola,
- Falta muito cunhado, e o cunhado, estamos quase,
Quase a enjoar das curvas e contra curvas, olhava pela janela, que horror, com cada encosta, e eu via o capim e a paisagem perdia-se na imensidão da planície, eu só sabia andar nas ruas de Luanda, o Douro,
O Douro metia-me medo,
- Falta muito, cunhado,
Estamos quase, e a estrada encurvada em subidas íngremes, e é sempre a subir, e eu pequenino a esconder-me na sombra dos pinheiros, e o avô Domingos a chegar ao portão de entrada, eu pendurado à espera, dava-me um abraço, um beijo,
- Chegamos, cunhada,
Afio as orelhas e faço-me à estrada. A noite que dorme no silêncio da lua em combustão milimétrica com os ponteiros do relógio, pergunto ao meu pai onde fica a praia, e não praia, pergunto ao meu pai pelas mangueiras do quintal, e nem mangueiras nem quintal, videiras e oliveiras, cerejeiras e pessegueiros, amendoeiras, e as bananeiras? E eu olhava os plátanos, e obrigava-os a serem mangueiras, e pegava nos pinheiros, e com lápis de cor, os pinheiros bananeiras, e quando olhava a erva do lameiro, imaginava a areia do mar, deitava-me no chão e começava a rebolar até me cansar, e parava quando uma sombra bloqueava os meus movimentos, e uma gaivota poisava na minha mão, e quando abria os olhos, quando abria os olhos um papagaio de papel brincando nas nuvens…
(texto de ficção)
Luís Fontinha
16 de Junho de 2011
Alijó