Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Jun 11

O vento aconchega-se-lhe nos ombros, a gola do sobretudo erguida até às orelhas pontiagudas, uns finíssimos fios de cabelo baloiçando na planície esbranquiçada da rua, nas entranhas das mãos um cigarro silencioso, finito, e a enganar a tosse, os prédios submersos nas nuvens cansadas da noite, o mestre João em passos milimétricos acompanhando o vai e vem das horas, a mão direita na algibeira, e num dos sapatos a biqueira de boca aberta, as calças amarrotadas pelos dias que não trabalha, aos poucos as palavras da noite anterior a dançarem na ardósia da memória, vamos colocar uma bomba na estação de comboios, este gajos são loucos, temos de forçar o governo a desistir e a fome é muita, na camisa um espaço em branco, a pele cinzenta da côdea de pão, meia dúzia de moedas fanadas no cofre da capela, e os santos sem fome, colocamos umas bombinhas e este cagarolas até se cagam, a direita é assim, quando começar a ver o rabo em ferida e a semear labaredas, ai que não mudam de politicas, mudam mudam,

- Desculpa o atraso, o transito está um caos,

Trouxeste tudo? Sim tudo, tenho aqui a caixinha, carregar no botão, carregar no botão e esperar, e PUM,

Era uma vez a estação de comboios, linhas e entrelinhas dispostas no encerado do pavimento, do rodapé janelinhas para a circulação de ratazanas, os inimigos dos governos, ao fundo uma sanita poeirenta, lavatório suspenso na parede encharcada de frases anti-direita, e no tecto,

- No tecto nuvens a desfazerem-se, produtos em fim de validade, metralhadoras embrulhadas em pijamas com listras, números junto ao peito, a enfermaria deserta, os medicamentos poisados no parapeito da janela, e em fila, alinhados por tamanho e cor, um revoltoso de arma em punho começa a disparar sorrisos e os comprimidos para emagrecer tombam, a gordura a escorrer pela fresta da porta, e PUM,

Como te chamas? Chamava-se…

Ai não que não mudam, e vão mudar tudo, o nomes das ruas terão de começar todos por P, privatizar todos os cagalhões de todas as fossas deste país, a chuva, que tem a chuva, a chuva vai ser privada, foda-se…, está fodido o agricultor pobre, o mar, também o mar? Tudo. Tudo privado.

- Até os nossos testículos vão ser privados,

E todos os rabos e peidas e toda a merda,

Viva este País!

- O transito está um caos e tinha medo que esta porcaria rebentasse…

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

17 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:10

Gracias amor…

Adoro-te parvo.

Percebe-se que das nuvens acordam gladíolos e vem-lhe à ideia as amargas palavras do tio Acácio quando pela tarde adormecia junto ao poço, o cigarro pendurado nos lábios, as mãos poisadas sobre o peito, e o tio Acácio em conclusões filosóficas, comparava-se a um cagalhão a boiar na garganta da sanita lá de casa, apenas uma pequena diferença, a cor.

E de pequenino aprendeu que a cor não importa, o poço na secura do verão desalentado de Agosto, os óculos amareleciam com os raios de sol oblíquos, os queixos seguravam-se com dois cordéis que tinha furtado à costura da mãe, e nos olhos duas rodelas de limão para a refrigeração, e a cor encurralada entre a sombra e o pincel que tilintava nos dedos calcinados pela enxada,

- De Cais de Sodré apressadamente para Santa Apolónia, o caracol das 19 horas agarrado ao cansaço dos carris, o automóvel imobilizou-se, a janela desce lentamente, de dentro emerge a farda de gala que o olha e lhe oferece boleia, indeciso, entro não entro, entra, a mochila junto às botas,

De dentro do poço uma voz que pedia ajuda, e as cabras em remoinhos no terreno do vizinho, o tio Acácio pendurado nas nuvens, engasgado na maré junto às rochas, as cabras saltitando de muro em muro, e do poço,

- A mão da farda de gala em carícias nas pernas dele, um semáforo imobiliza-o, o semáforo agarrava-se-lhe ao pénis, pela espinha um calafrio intenso, e da gaita, da gaita a pequinês, diminuindo até desaparecer junto ao rio, paneleiro de merda,

O poço seco, e alguém a afogar-se na sombra.

O corpo começa a estremecer como um veleiro desgovernado, as mãos cruzadas em silêncio, no cérebro circulavam frases, vou foder os cornos a este gajo, abro a porta e salto com o automóvel em andamento, o tio Acácio acorda, levanta-se e olha para a profundidade do poço, nada, apenas o chão térreo e algas vindas da noite,

- Posso convidar-te para sair,

E gracias amor…

Adoro-te parvo, adoro-te quando finges olhar a janela, e sei que me olhas a mim, percorres cada milímetro quadrado do meu corpo, abraças-te como se eu fosse um petroleiro encalhado no Tejo, pegas nos meus seios, poisas-lhes as mãos semi-difusas das ruas da cidade, os prédios escondem-se nos becos, e quando sobes as escadas nos teus olhos de alecrim as gaivotas em desassossego, a fome dos mendigos quando pegas na minha mão, e eu, e o tio Acácio, e o paneleiro, e tu, fartos que este texto termine, e se afunde no poço,

- A pila silenciada durante dois dias, e só ao terceiro ressuscitou, sentada à direita da perna esquerda,

As palavras se afundam no poço.

 

 

(texto de ficção)

Luís Fontinha

17 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:15

As amarras que me prendem aos socalcos do Douro

E o meu corpo em silêncio

Afunda-se no rio

Como um pássaro martirizado no fim de tarde,

 

O xisto entranha-se nas fendas das minhas mãos

A secura nos lábios onde se escondem cigarros

E projectam a minha sombra na neblina,

Do meu peito uma voz esquisita

 

Trémula como a luz que as videiras absorvem

Espalha-se nos cachos em crescimento,

O meu corpo funde-se e fica líquido

 

Misturado com o vinho do Porto,

E nas amarras de tungsténio

Poisa a tua mão que me vai libertar…

 

 

Luís Fontinha

17 de Junho de 2011

Alijó

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:46

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