Existo.
Nas sílabas amargas da minha sombra, entre o rio que me sufoca e os socalcos que deixam as minhas asas em brasa, no ténue vento da manhã, voar dentro de mim e bater com a cabeça no infinito, existo, não sei,
Existo.
Nas sílabas amargas da minha sombra, entre o rio que me sufoca e os socalcos que deixam as minhas asas em brasa, no ténue vento da manhã, voar dentro de mim e bater com a cabeça no infinito, existo, não sei, onde estão as amarras imaginárias que me prendem a esta terra, não existem, porque não voo, voar, ser livre nos céus quando me sento no xisto esfarrapado pela chuva, quando me deito na cama, e a cama silenciosamente presa ao pavimento, sentado, a cama deitada, o espelho do quarto olha-me, eu olho-o, e dentro do espelho não eu, dentro do espelho,
- Círculos, quadrados, rectas em rotação, milhões de pontos esfomeados, o hipercubo aproxima-se de uma cabeça, a cabeça abre e fecha a boca, nos dentes o marfim separa-se e cola-se a uma das faces, a cabeça entra no hipercubo, e cabeça e hipercubo em rotação, e os pequeníssimos pontos começam a separar-se, e a anos-luz, desaparecem, perdem-se,
Os pontos são pontos. Os pontos existem. E com a distância deixo de os ver,
Tenho medo. Cada objecto constituído por milhões de pontos, o meu corpo pontos, e quando me distancio do observador, quando me distancio deixam de me ver, começo em ponto e termino em nada, mas existo, vocês é que não me vêem, braços, pernas, cabeça, coração, olhos, nos olhos lágrimas, e nas mãos, nas mãos rectas paralelas, e querem que eu acredite que no infinito se vão encontrar, e eu acredito,
- Voar dentro de mim e bater com a cabeça no infinito, o espelho escuro, frio, longe do quarto, abre a janela, corre o cortinado, e de dentro de mim milhões de pontos em movimento, escoam-se pela janela como se fosse um líquido, o equilíbrio, a temperatura fica constante, e os pontos através de uma fresta do tempo começam a unir-se, o meu corpo fica corpo, novamente um ponto, que de dentro do quarto, não existe, não me vêem,
Existo.
Na poeira que a terra cospe, nos rabelos estacionados no Douro, quando as forças que equilibram o meu corpo deixam de estar em equilíbrio, um pequeníssimo ponto moveu-se, o corpo tomba e morre, sobre ele o vento que imprime na tela dos socalcos o arco-íris, a luz decompõe-se e abraça-se aos tenros rebentos das videiras,
- Voar, ser livre nos céus quando me sento no xisto esfarrapado pela chuva, o sangue que nas veias engrossa, movimenta-se silenciosamente dentro da tarde, no relógio cinco horas, um milionésimo de segundo-luz, deixo de ser eu,
Existo.