Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

23
Jun 11

Chove, e porque chovem?,

Nas pétalas do sol as nuvens embainhadas na cor do teu vestido, os silêncios amorfos que da minha mão vão até ao fundo da rua, viram à direita, descem ruidosamente as Dálias do jardim e saltam a vedação, o tenente está bêbado, no estômago a vodka esmiuçada em gema de ovo, puré de batata e salada de alface, o corpo geme, o corpo empenado na ombreira da porta, o menino que à porta da igreja pede esmola, pega numa bola e lança-a para os braços do mendigo, o tenente tropeça no vento e cai, a bola rola pelo pavimento como se fosse uma moeda perdida na avenida, geme em voz alta as palavras do livro que poisa sobre a mesa-de-cabeceira, queixa-se em voz alta que lhe dói a cabeça e as tonturas de abraços com os enjoos, foda-se meu tenente, vossemecê bebeu uma garrafa inteira de vodka, se fosse eu, e se fosse eu já tinha tombado na sombra,

- S. Tomé e Príncipe, Setembro de 1971,

Meus queridos,

Estou suspenso entre o ontem e o amanhã, o barco baloiça e o mar parece não ter fim, e o mar é tão grande, e eu tão pequenino pendurado na grade com as pernas presas pela mão do pai, o pai fuma cigarros, e no bar engana o enjoo com bacalhau cru, deixou de vomitar e eu nunca enjoei, depois do pequeno-almoço os camuflados levam-me para a piscina, compram-me brinquedos e cantam canções, não os percebo, mas vêm felizes,

Vou a caminho,

O meu tenente bebe como o caralho, e se eu bebesse assim água estava fodido, andava sempre com a bexiga nas mãos, todas as noites uma garrafa de vodka, não se enjoa?, claro que me enjoa quando vou de cacilheiro para o outro lado e encosto no muro da tia no Pinhal dos Frades e o chão começa a andar, o primo Fernando que morreu agarra-se ao meu corpo basculante, sorri-me e gosto de ti, e ao fundo da avenida a bola apreendida por um agente de autoridade, navalha na mão, e a laranja em duas partes, comes uma agora, e a outra, a outra durante a noite para enganares o estômago,

- Meus queridos, não quero alongar-me, compramos tecidos, búzios que se encostam ao ouvido e ouve-se o ruído do mar, e bugigangas, a noite começa a esconder-se e daqui a pouco vamos partir, os camuflados impacientes, filhos, pais e mães e namoradas e mulheres e sombras que os esperam em Lisboa, e como eu, não percebem esta guerra,

O barco começa a movimentar-se lentamente na barriga do mar,

O livro na mesa-de-cabeceira, a metade da laranja sobre o livro, o agente de autoridade com dois pedacinhos de borracha na mão, a laranja foi-se por entre os dedos, o cacilheiro em roncos no fim da tarde, o tenente esconde nas arcadas do Terreiro do Paço a garrafa de vodka, o primo Fernando o primeiro a entrar no automóvel, coloca o sinto de segurança de diz-me adeus, o fim de tarde sobe até ao castelo e no rio um paquete aproxima-se vagarosamente, um menino pendurado nas grades,

- Meus queridos, estamos a chegar a Lisboa, brevemente em casa,

A ponte incha e derrete-se nas estrelas,

Sorrio para o menino, os cigarros consomem-se no meu peito, e enquanto escrevo um poema junto ao Padrão dos Descobrimentos o menino acena-me, levanto os olhos e percebo que acabo de chegar a Lisboa…, e rio acima desencaixoto-me na confusão do Terminal de Cruzeiros da Rocha Conde de Óbidos, o cheiro intenso a nafta, os braços pegajosos nas asas de uma pomba, a mão para não me perder, o meu tenente nasceu em Angola, pega na garrafa que escondeu no Terreiro do Paço e diz-me que não sabe, rasga a folha de papel e atira com o poema para o rio, prega os olhos à noite e cruza os braços, sei lá eu onde nasci!

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:03

A ardósia encostada aos calções da tarde,

Francisco de Francisco, inventa letras na sombra das amoreiras, desenha pássaros dentro da cabeça, e pendura nos cabelos pedacinhos de estrelas, pedacinhos de pequeníssimas gotinhas de água, chamam-me da rua, Francisco de Francisco, olho, e sinto o cheiro dos peixes estacionados, Madalena acena-me e sorri-me, há quanto tempo Francisco,

- Há quanto tempo vagueio pelas sombras da cidade, há quanto tempo trago em mim o cheiro da saudade, há quanto tempo, quando o pinheiro ranhoso do recreio da escola me dava comichão, e eu fazia-lhe festas com a mão, há quanto tempo não me sento junto ao rio e olho os barcos emagrecidos nas tarde de Belém,

Sorriem-me,

Os comboios de passo apressado rumo a Cascais, o cão da senhora idosa faz chichi no candeeiro de parede, engordam as sombras dos veleiros em Algés, mingua o vento que desce a Calçada da Ajuda, ele baixa o vidro do automóvel ancorado junto aos Jerónimos e convida-me para irmos dar uma voltinha, e eu pensava, e se te fosses foder seu paneleiro, cinco contos e faço-te um, vamos, esta cidade infestada de ratazanas com cio, desço as escada e o mictório à minha espera, uma cabeça ao meu lado deseja a minha pila, os camaradas do quartel, ontem fui com um, fez-me um broche e ganhei cinco contos e depois, depois ainda lhe fodi os cornos,

- Salva-me, salva-me Madalena desta cidade infestada de ratazanas,

O pôr-do-sol junto ao rio,

Os teus braços pendurados no meu pescoço de menino perdido no cacimbo, as tuas mãos nos meu lábios quando corria no capim e tropeçava numa sombra, deitava-me de barriga para o ar, esperava pelo perfume do teu corpo antes de emergir a madrugada, descobria-te por entre os lençóis amarrotados da noite, o Doutor Jivago de castigo no armário, no corredor dezenas de pilas em fila à espera de escreverem na ardósia as sílabas da cerveja,

- Como consegues viver nesta cidade, Madalena?, as ruas não têm fim, os prédios escondem-se no sorriso das pernas apressadas que caminham no fim da tarde, salva-me Madalena,

O sol extingue-se,

O vinte e oito engasga-se em Cais de Sodré, os enjoos que surpreendem taxistas de perna entrelaçada na minissaia das meninas do Texas, e há quanto tempo,

- Tira-me daqui, Madalena,

Sem tempo,

Há quanto tempo me ausentei de ti minha cidade, há quanto tempo deixei de caminhar nas tuas ruas, e o meu corpo balançando com o peso do vento, tombava junto à Torre de Belém, bebia café na esplanada de Belém e o pires da chávena deitado sobre a água do rio, a chávena suspensa na minha mão e chamava por ti, gritava às gaivotas que me trouxessem a ardósia da tarde, e eu pensava, preciso novamente das palavras que enterrei nos socalcos do Douro, e a manhã parece não ter fim,

- Salva-me…

Fim dentro de mim,

Não respiro, deitado, a caixa de madeira entranha-se nas minhas costas, o sabor amargo do pinho, o crucifixo pendurado numa das tampas olha-me, vestem-me um fato, gravata e sapatos engraxados, e eu resmungo, não quero fato, não quero gravata e não sapatos engraxados, não respiro e dentro de mim flores que abrem os olhos, da terra o peso da matéria, não respiro, a tosse aumenta de volume, as pazadas de terra diminuem, cessam, o meu corpo coberto na ondulação do mar de Luanda,

- Não vieste Madalena,

Descansa em paz.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:03

Desejo-me não desejar

Subir a montanha na manhã fria e escura

E nos meus olhos brincam as ondas do mar

E dos meus olhos um sismo de ternura,

 

Desejo-me deitar sobre a maré

Correr nas extremidades do vento

Subir a montanha a pé

No teu corpo em sofrimento,

 

Desejo-me não desejar

Brincar com as pétalas da dor minha mão

Fabricar sorrisos nos lábios e sonhar

Sonhar que na noite acorda um coração.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:47

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