E ela sobre a minha cama saltitando nos lençóis da noite, percorre cada milímetro quadrado de tecido, e o que faz ela no meu corpo, bebendo do meu suor?,
A mosca,
E das asas se fez homem, o meu quarto ténue nos electrões possessos da madrugada quando na rua o rosnar do autocarro da carreira para a ilha do desassossego, as árvores escondem-se na encosta protegida pelas escarpas da literatura, a poesia engasga-se no vento que desce e volta a subir e desaparece no céu, sobre a cama ela deitada transparente como a chuva do inverno desprotegido e bebendo as finíssimas gotinhas do meu suor, sacudo-a com a mão, persistente esta miúda, e volta à posição inicial, alimenta-se dos meus braços entupidos nos cabelos do cortinado, e na parede a passadeira, o outro lado da rua, o semáforo vermelho, e o sangue jorra mas veias da intermitência, alto lá!, e se eu te pregasse umas palmadinhas no rabo?, pumba, era um vez uma mosca,
- Seu grande parvo diz-me ela de soslaio, e parvo porquê?, o arco-íris da pela temperado com lasanha e rodelas de cenoura, o xarope para a tosse na tigela de barro, a constipação suspensa no estendal, e quem a quiser que a leve,
No banco do jardim,
“Era uma vez uma mosca” a estória completa de Marilu, puta travesti e poetisa, cançonetista dos bares de Alcântara, viajava nos táxis de Lisboa e terminava a noite junto ao Tejo nos braços do mendigo que fazia equilibrismo no arame da vida, das algibeiras silêncios de pão e restos de tabaco, literatura pura a estória de Marilu, poesia que se escrevia quando o corpo subia e descia as árvores na pensão da ruela, o sino da capela subia as escadas e tropeçava na sombra, alto lá!, e se eu te pregasse umas palmadinhas no rabo?, pumba, o xarope de cenoura a escorrer no lava-louça e já no interior da garganta vira de direcção e some-se nos pulmões apedrejados pelo fumo do cigarro,
- Podes deixar o dinheiro sobre a mesa-de-cabeceira,
No guarda-fato,
Dançam estrelas de papel e cordéis de manteiga, o triciclo com o acento de madeira do Brasil pendurado no cabide, cuecas e soutiens, cobertores e lençóis, e tudo a cinco euros, o cigano faz desconto, duas cinco euros, menos só de borla PORRA!, de borla não, deixa aí o dinheirinho, quantas notas já pousaram na mesa-de-cabeceira?, não se lembra, esqueceu-se quando menino cavava a terra molhada com as unhas da mão e as vogais pareciam batatas a acordarem das profundezas do púbis, na lentidão das horas, os morcegos,
- E quantas?,
Frases deixei cair na tua mão,
Quando no meu rosto ainda habitavam os vinte anos, quando o meu corpo tombava na tempestade das noites de Lisboa, quantas?, quantas moscas com estórias, e poetisas sem estória, e quantas abraçadas ao mendigo com pãezinhos de leite e chocolate ao fim da tarde, a carrinha segue-o, segue-a, e se eu matasse a mosca com um sorriso?,
Pumba.