Vinte decilitros de água no estado sólido,
Agitar bem,
Nas escadas que dão acesso ao sótão e as telas e os pincéis e os tubos de tinta embrulhados nas teias de aranha do compartimento exíguo e mais pequeno que um caixão de madeira, o meu atelier, onde escrevo onde pinto e onde defeco estas horríveis palavras com as minhas horríveis mãos e lidas com os meus horríveis olhos e que publico no meu horrível blog,
- O cansaço dos dias dentro da minha cabeça esvaziada pelo fluxo crematório das horas infindáveis, o estúpido do rafeiro que me rói os tornozelos de madeira, finca os insignificantes dentes nas minhas calças, e era uma vez um par de calças,
Sorri-me na sombra da noite,
O blog que criei e que baptizei de cachimbo de água, vinte decilitros de água no estado sólido, agitar bem, e as palavras misturam-se na luz do candeeiro, o fumo do cachimbo empapa-se nas órbitas salientes dos postigos debruçados sobre o telhado do vizinho, e o cubículo caixão tão minguado que nem ela lá cabia deitada, nua, nua nem pensar,
- E os livros?,
Os livros excitavam-se e pluf…
O soalho durante a noite a esticar os bracinhos, o ruído do batimento do coração da porta de entrada, as veias que transportam os electrões salientes no corpo das paredes, toco no interruptor, e em vez de acender a luz da sala oiço o cavalo a rinchar na loja, o electricista cambiou os finíssimos fios da instalação eléctrica, e pluf,
A excitação dos livros a excitação das moscas de asa adocicada a excitação dos cachimbos de madeira, a minha própria excitação, quando,
- Abro a janela e um petroleiro de bico amarelo que nos olha, e o cubículo caixão roda, o corpo de bruços estende-se ao longo do soalho, e agora?,
Vai mesmo de pé,
O cachimbo de água magríssimo na tarde sobre a secretária, agitar bem, e o atelier transpira e o suor esconde-se junto ao rodapé, do ar rarefeito do cheiro intenso a gaivotas envenenadas pelo sol um dos quadros separa-se da parede e tomba na areia junto à praia,
- De pé porque não!,
Vinte decilitros de água no estado sólido,
Uma carcaça e uma moeda de dois euros, e não falta nada e o cubículo caixão cerra os olhos no cacimbo da tarde, começa a chover, aqui não, e certamente que neste preciso momento chove, em sitio algum, fecho a janela e apago a luz; o atelier some-se nas cascatas que por entre as rochas deitam lágrimas, e o rio engorda e o rio silenciosamente deita-se no mar.