Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

01
Jul 11

Das gotinhas de água,

A pele de silício que dos olhos de uma árvore a manhã acorda e em perseguições a um círculo desenhado na terra a chuva despede-se das horas lúcidas do relógio de pulso, acabo de desatracar do sono e já sinto o cansaço do mar nas minhas mãos, a Joana com o olhar pendurado na janela diz-me que hoje é sábado, hoje é sábado sabes, e eu nada preocupado que seja sábado terça-feira ou quinta-feira, hoje é um dias como os outros, com vinte e três horas cinquenta e seis minutos quatro segundos e nove centésimos, e depois?, e depois os barcos deixaram de passear no rio lamenta-se a Joana numa voz áspera e alicerçada na vidraça quando percebe que eu sentado na cama pareço um pedregulho inerte na maré dos dias em corrida apressada para a noite,

- Já estamos atrasados e o casamento é às onze horas e tu ainda nesses preparos, pareces um palhaço sobre a cama, é o casamento da tua irmã,

Não me apetece, diz ele,

Hoje não saio da cama.

E nem com uma grua ele se levanta, o corpo inchado, o corpo pesadíssimo como uma esponja mergulhada na lama do musseque, dói-me a barriga mãe e hoje não escola, tenho febre, põe-me a mão na testa, vês Joana, eu sei que não vês porque tu nunca vês nada, só queres ir para te mostrares, eu percebo, percebes?, deixa-me ficar na cama mãe, só hoje, é sábado e não escola hoje, a cabeça começa a derrapar-me no pavimento dos lençóis e cubro a cabeça e adormeço, está decidido, hoje não saio daqui,

- E onde estava a minha irmã ontem?, murmura ele com os tecidos da cama sobre a cabeça como se tratasse de uma peregrinação a Fátima, de joelhos e com o terço na mão,

Vai tu,

E onde estava a minha irmã ontem quando precisei dela? De férias com o noivo banqueiro, vai tu Joana, hoje não vou para a escola, a diarreia é imensa e a cabeça estonteia-se como uma pedra deitada ao sol, hoje não mãe, hoje não,

- Não percebo porque és sempre assim…

E sempre assim como?,

Sempre assim antes de fazeres alguma coisa, primeiro estremunhas e depois, depois fazes o que te pedem e às vezes até mais do que é pedido, sais mesmo ao teu avô dizia-me a minha mãe quando criança deitada no quintal em Luanda, e o cordel do papagaio abraçado ao portão de entrada, os pássaros ensurdecedores encolhendo e esticando no céu, e o meu boneco chapelhudo sentado no triciclo a passear pelo passeio em direcção ao galinheiro, as pombas, e hoje não mãe, hoje não vou à escola,

- Meu menino, vou andando, e ele indiferente à minha conversa, ele nu debaixo da areia da praia e na cabeça o chapéu dos silêncios do quarto,

Vai com Deus minha filha,

A pele de silício que dos olhos de uma árvore a manhã acorda e em perseguições a um círculo desenhado na terra o recreio da escola suspenso num edifício decrépito e que às vezes do tecto eram cuspidos pedacinhos de gesso, e no ditado a brancura das palavras, as palavras misturavam-se com o gesso e desapareciam, e dois erros gritava-me a senhora professora, porquê mãe, porque tenho de ir à escola, não deixes que eu vá mãe, dói-me tanto a cabeça mãe, tanto,

- Felicidades minha querida, o teu irmão vem depois, e ela acena-me com a cabeça que não,

Não acredito que venha,

A minha irmã a segredar à Joana, sabes ele é muito casmurro, a Joana que sim, e eu deitado de costas sobre a cama e as mãos debaixo da cabeça, olho o tecto, e percebo que vão começar a cair sobre mim estrelas de gesso, e o ditado, no ditado as palavras que tomam banho na brancura da água do rio, e depois os barcos deixaram de passear no rio lamenta-se,

Hoje não mãe, hoje não escola.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:21

Sobram-me as pedrinhas da rua

Porque essas são de toda a gente

Sobram-me os silêncios da lua

Quando em mim eu ausente,

 

Viver na escuridão dos dias passados

Ou esconder-me na neblina junto ao mar

Ter os braços amarrados

E na noite me afundar,

 

Em sacudidelas amargas deixo cair

A pelugem das minhas asas

E cerro os olhos para fugir…

 

E poderei eu esconder

O sorriso das minhas brasas

Na fogueira que não cessa de arder?

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:38

O meu corpo não sente

O vento da madrugada

O meu corpo não gente

Sem vida sem nada,

 

O meu corpo que finge viver

E sobre o mar adormece

No meu corpo sofrer

Na manhã que desaparece,

 

Vem a menina do mar

Ao meu corpo ausente

Vem menina sonhar

 

Os silêncios das palavras tua mão

Que o meu corpo não sente

No meu corpo o coração.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 17:45

O uivar dos pássaros

Das ruas imersas em pedacinhos amanhecer

O sol que se alicerça nas amoreiras

E escorre da monta ao rio esconder,

 

Das páginas da manhã

As sílabas das horas mortas

As vogais em silêncio

Correndo pelas ruas tortas,

 

Em flor a tua mão

O livro semeado na alvorada

No livro o papel encardido

Quando acorda a madrugada,

 

Ai senhor o uivar dos pássaros

E das ruas vem-me o cheiro a hortelã

Nos plátanos cansados

Os segredos da manhã,

 

E não importa que sou

Porque tenho corpo para sofrer

Cheirar o uivar dos pássaros

E lutar para não morrer…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:17

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