Das gotinhas de água,
A pele de silício que dos olhos de uma árvore a manhã acorda e em perseguições a um círculo desenhado na terra a chuva despede-se das horas lúcidas do relógio de pulso, acabo de desatracar do sono e já sinto o cansaço do mar nas minhas mãos, a Joana com o olhar pendurado na janela diz-me que hoje é sábado, hoje é sábado sabes, e eu nada preocupado que seja sábado terça-feira ou quinta-feira, hoje é um dias como os outros, com vinte e três horas cinquenta e seis minutos quatro segundos e nove centésimos, e depois?, e depois os barcos deixaram de passear no rio lamenta-se a Joana numa voz áspera e alicerçada na vidraça quando percebe que eu sentado na cama pareço um pedregulho inerte na maré dos dias em corrida apressada para a noite,
- Já estamos atrasados e o casamento é às onze horas e tu ainda nesses preparos, pareces um palhaço sobre a cama, é o casamento da tua irmã,
Não me apetece, diz ele,
Hoje não saio da cama.
E nem com uma grua ele se levanta, o corpo inchado, o corpo pesadíssimo como uma esponja mergulhada na lama do musseque, dói-me a barriga mãe e hoje não escola, tenho febre, põe-me a mão na testa, vês Joana, eu sei que não vês porque tu nunca vês nada, só queres ir para te mostrares, eu percebo, percebes?, deixa-me ficar na cama mãe, só hoje, é sábado e não escola hoje, a cabeça começa a derrapar-me no pavimento dos lençóis e cubro a cabeça e adormeço, está decidido, hoje não saio daqui,
- E onde estava a minha irmã ontem?, murmura ele com os tecidos da cama sobre a cabeça como se tratasse de uma peregrinação a Fátima, de joelhos e com o terço na mão,
Vai tu,
E onde estava a minha irmã ontem quando precisei dela? De férias com o noivo banqueiro, vai tu Joana, hoje não vou para a escola, a diarreia é imensa e a cabeça estonteia-se como uma pedra deitada ao sol, hoje não mãe, hoje não,
- Não percebo porque és sempre assim…
E sempre assim como?,
Sempre assim antes de fazeres alguma coisa, primeiro estremunhas e depois, depois fazes o que te pedem e às vezes até mais do que é pedido, sais mesmo ao teu avô dizia-me a minha mãe quando criança deitada no quintal em Luanda, e o cordel do papagaio abraçado ao portão de entrada, os pássaros ensurdecedores encolhendo e esticando no céu, e o meu boneco chapelhudo sentado no triciclo a passear pelo passeio em direcção ao galinheiro, as pombas, e hoje não mãe, hoje não vou à escola,
- Meu menino, vou andando, e ele indiferente à minha conversa, ele nu debaixo da areia da praia e na cabeça o chapéu dos silêncios do quarto,
Vai com Deus minha filha,
A pele de silício que dos olhos de uma árvore a manhã acorda e em perseguições a um círculo desenhado na terra o recreio da escola suspenso num edifício decrépito e que às vezes do tecto eram cuspidos pedacinhos de gesso, e no ditado a brancura das palavras, as palavras misturavam-se com o gesso e desapareciam, e dois erros gritava-me a senhora professora, porquê mãe, porque tenho de ir à escola, não deixes que eu vá mãe, dói-me tanto a cabeça mãe, tanto,
- Felicidades minha querida, o teu irmão vem depois, e ela acena-me com a cabeça que não,
Não acredito que venha,
A minha irmã a segredar à Joana, sabes ele é muito casmurro, a Joana que sim, e eu deitado de costas sobre a cama e as mãos debaixo da cabeça, olho o tecto, e percebo que vão começar a cair sobre mim estrelas de gesso, e o ditado, no ditado as palavras que tomam banho na brancura da água do rio, e depois os barcos deixaram de passear no rio lamenta-se,
Hoje não mãe, hoje não escola.