A terra húmida da tarde engole a sombra do mendigo estacionado nos caixotes do lixo da cidade, uma árvore que poisa na neblina dos carris do comboio,
O meu pai em calções construía círculos no pavimento térreo do bairro e debaixo das árvores a Vespa em brincadeiras com o vento, a cidade submersa na escuridão dos candeeiros de néon e os comboios em linha recta furando as horas que na pontualidade da serra a encosta escorria sobre o rio corneado pelo mar, os cornos do boi que passeia junto ao rio e de chapéu na cabeça pendura o cigarro nos lábios da traição, o tabaco goela abaixo e dos caixotes do lixo a mediocridade de duzentos e seis ossos etiquetados e devidamente catalogados que o caixeiro-viajante transporta na algibeira, o meu pai adormece sobre a Vespa, e do pavimento térreo do bairro vê-se ao longe o musseque encardido pelo sol que comia a copa das árvores, e isto não é terra para mim lamentava-se ele,
A bedford amarela de musseque em musseque a semear Cucas, Coca-Cola e refrigerantes rascas, não vais comer rapaz?, não me apetece patrão respondia o ajudante da bedford amarela, e à segunda-feira sempre o mesmo, o ajudante teso como um carapau e a bater com os testículos na sombra das árvores,
O caixeiro-viajante a escrever notas de encomenda na palma da mão, e isto não é terra para mim lamentava-se ele nos seios pequeníssimos de cereja vermelha, não vais comer rapaz?, o útero misturado na saliência da noite, três grades de Cuca duas de Coca-Cola e uma embalagem de arroz, vai ao camião rapaz e o rapaz encostado às nuvens na sonolência da tarde, na saliência da noite as coxas cremadas nos duzentos e seis ossos,
O comboio coxas dentro o comboio misturado no lamacento púbis da maré, o cheiro do mar quando descarrega os detritos do corpo e as gaivotas silenciosamente perdidas nos lábios dela, amo-te, desejo-te, uma Cuca na tarde, a areia finíssima do Mussulo que se me encosta à pele penhorada pelas rochas dos teus pés, não comes rapaz?, nas tuas mamas que alimentam os lábios incendiados da manhã,
E isto não é terra para mim lamentava-se ele, a bedford amarela no final do dia com as costas encandeadas pelo cansaço, os braços doridos e no bolso da camisa a esferográfica Bic para apontar na mão as notas de encomenda, não comes rapaz?, não ter fome patrão sorria ele de dentes lavados com lixívia, o meu pai em calções construía círculos no pavimento térreo do bairro e debaixo das árvores cresciam algas, círculos na terra húmida quando a chuva se despedia da tarde, o boi junto ao rio a enterrar os olhos em Almada e nos cornos um malmequer pendurado, o cacilheiro em manobras de reanimação, respiração boca a boca, o coração do musseque deixou de bater, morreu, e lamento diz o ajudante da bedford amarela, ao menos aproveitem-lhe as mamas gritava o malmequer nos cornos do boi, não comes rapaz?, lamentava-se o meu pai sentado na Vespa, e da manhã os lábios tetraplégicos do ajudante da bedford amarela que constantemente arreganhava a dentadura enquanto o cacilheiro abraçado a cordas e aos poucos descia a funda sepultura; e isto não é terra para mim, lamentava-se ele enquanto assistia ao enterro.