Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

02
Jul 11

A terra húmida da tarde engole a sombra do mendigo estacionado nos caixotes do lixo da cidade, uma árvore que poisa na neblina dos carris do comboio,

O meu pai em calções construía círculos no pavimento térreo do bairro e debaixo das árvores a Vespa em brincadeiras com o vento, a cidade submersa na escuridão dos candeeiros de néon e os comboios em linha recta furando as horas que na pontualidade da serra a encosta escorria sobre o rio corneado pelo mar, os cornos do boi que passeia junto ao rio e de chapéu na cabeça pendura o cigarro nos lábios da traição, o tabaco goela abaixo e dos caixotes do lixo a mediocridade de duzentos e seis ossos etiquetados e devidamente catalogados que o caixeiro-viajante transporta na algibeira, o meu pai adormece sobre a Vespa, e do pavimento térreo do bairro vê-se ao longe o musseque encardido pelo sol que comia a copa das árvores, e isto não é terra para mim lamentava-se ele,

A bedford amarela de musseque em musseque a semear Cucas, Coca-Cola e refrigerantes rascas, não vais comer rapaz?, não me apetece patrão respondia o ajudante da bedford amarela, e à segunda-feira sempre o mesmo, o ajudante teso como um carapau e a bater com os testículos na sombra das árvores,

O caixeiro-viajante a escrever notas de encomenda na palma da mão, e isto não é terra para mim lamentava-se ele nos seios pequeníssimos de cereja vermelha, não vais comer rapaz?, o útero misturado na saliência da noite, três grades de Cuca duas de Coca-Cola e uma embalagem de arroz, vai ao camião rapaz e o rapaz encostado às nuvens na sonolência da tarde, na saliência da noite as coxas cremadas nos duzentos e seis ossos,

O comboio coxas dentro o comboio misturado no lamacento púbis da maré, o cheiro do mar quando descarrega os detritos do corpo e as gaivotas silenciosamente perdidas nos lábios dela, amo-te, desejo-te, uma Cuca na tarde, a areia finíssima do Mussulo que se me encosta à pele penhorada pelas rochas dos teus pés, não comes rapaz?, nas tuas mamas que alimentam os lábios incendiados da manhã,

E isto não é terra para mim lamentava-se ele, a bedford amarela no final do dia com as costas encandeadas pelo cansaço, os braços doridos e no bolso da camisa a esferográfica Bic para apontar na mão as notas de encomenda, não comes rapaz?, não ter fome patrão sorria ele de dentes lavados com lixívia, o meu pai em calções construía círculos no pavimento térreo do bairro e debaixo das árvores cresciam algas, círculos na terra húmida quando a chuva se despedia da tarde, o boi junto ao rio a enterrar os olhos em Almada e nos cornos um malmequer pendurado, o cacilheiro em manobras de reanimação, respiração boca a boca, o coração do musseque deixou de bater, morreu, e lamento diz o ajudante da bedford amarela, ao menos aproveitem-lhe as mamas gritava o malmequer nos cornos do boi, não comes rapaz?, lamentava-se o meu pai sentado na Vespa, e da manhã os lábios tetraplégicos do ajudante da bedford amarela que constantemente arreganhava a dentadura enquanto o cacilheiro abraçado a cordas e aos poucos descia a funda sepultura; e isto não é terra para mim, lamentava-se ele enquanto assistia ao enterro.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:52

Mergulho

Dilato-me no vácuo como um sistema de equações

Matrizes alicerçadas aos meus braços

E nas minhas pernas as integrais triplas

 

O peso mingua e o meu corpo em pó

Amarrotado a uma folha de papel

Procuro o meu centro de massa

E um ponto esconde-se na manhã

 

O sol em mim que se derrete

E alimenta as veias do meu cansaço

Às árvores os pássaros

Ao poema as palavras

 

Que jorram do meu sangue em cadáver

E se cruzam na esquina da rua

Putas em putas os cabelos ao vento

E nas escadas do sótão

 

As migalhas da miséria

Pedacinhos de piolhos

Agarrados ao cobertor

E roem-me os tornozelos de números

 

Complexos infinitos e reais

Vem o vento e leva o cheiro de mim

A carne podre numa cama ancorada à janela

No sótão da casa

 

Casa? Quatro paredes de cartão

No tecto as estrelas do céu

As montras das lojas falidas

E do soalho as pedrinhas do passeio

 

Mergulho

Em ti oração da manhã

E dizem-me que Deus sentado no poleiro

Indiferente arrogante

 

Um político de merda

Como todos as merdas

Indiferentes

Arrogantes.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:43

Este inferno

Dos barcos amordaçados

Que entram e saem

Dos meus braços cansados,

 

E das minhas mãos

Acordam as nuvens sem destino

Finco os olhos no espelho

E vejo-me menino

 

Nas ruas desertas da morte

Nos quintais empalhados pela sombra das mangueiras

Porquê, porquê esta vida sem sorte

Na sombra das oliveiras.

 

Este inferno

Na vida sem sentido na vida desgraçada

Eu, uma árvores inclinada na tarde,

Eu, uma flor desfolhada

 

Levada pelo vento e atirada ao mar,

Dos barcos amordaçados

As minhas pétalas em lágrimas de luar

Os meus olhos nas rochas encalhados…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:21

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