A volúpia da noite
Quando o néon se extingue nas mãos do meu corpo,
A insensibilidade dos ouvidos quando a luz em mudanças de direcção poisa no cansado ombro da solidão, uma auréola de braços cruzados indiferente à cadeira onde me sento, poeirenta e atulhada na dor das rosas do jardim, a isto chamo eu morte, estar vivo e não sentir as roldanas em movimentos, perder a noção da rotação dos veios excêntricos que dentro do cérebro circulam a alta velocidade, e perceber que às rodas dentadas faltam dentes, está quase diz o dentista para o círculo da boca, o alicate e a chave de fendas suspensos no bolso do fato-macaco,
- E é só mais um bocadinho, agarre-se à cadeira, força…
E trinta e cinco euros para curar a gripe do dente em delírio e com febre, e perceber que as rodas dentadas dentro de mim deixaram de correr encosta abaixo, o rio deixou de ser rio, as nuvens deixaram de ser nuvens, os seios dela ainda são os seios dela, mas são dela responde-me o dentista enquanto desinfecta as mãos nos desperdícios da tarde, trinta e cinco euros?,
- Pronto com dez por cento de desconto e leva o dente para casa, olhe tive uma ideia, porque não pendura o dente no cachimbo de água?, ficava bem, não, que diz,
Se o doutor se fosse foder!, quer dizer é tudo dela, os seios são dela as coxas são dela os lábios são dela a boca é dela, e eu doutor?, e eu fico com o quê?, eis as palavras que escorregam pela falha do dente que este camelo acaba de me saquear,
- O senhor fica com o dente pendurado no cachimbo de água,
A olhar o tecto enquanto construo círculos quadrados rectas e rectas paralelas, a isto chamo eu morte, estar vivo e não sentir as roldanas em movimentos, ouvir o comboio e o trepidar dos lençóis embrulhados no cobertor, a isto chamo eu morte, quando os barcos me entram pela janela e se deitam na minha cama, e ele pergunta-se, e ele pergunta-me, e eu também me pergunto, e porquê?,
- E porquê doutor, porquê um dente pendurado no cachimbo de água?,
E porquê doutor, porque crescem algas nas minhas costas, e porquê doutor, porque tem de ser tudo dela e de mim nada, porquê doutor?, a isto chamo eu morte, quando quero dormir e dentro dos meus olhos os papagaios de papel em brincadeiras nos céus de Angola, porquê doutor?, e dentro dos meus olhos o mar que me acena,
- Vem, vem não tenhas medo,
E eu, doutor, e eu agarrava-me ao pescoço da minha mãe aos gritos, o medo do mar doutor, o medo do mar quando me sentava no portão de entrada e o vento fininho de fim da tarde que me penteava e alisava o rosto de criança, ai o mar doutor, o mar de Luanda é tão lindo, tão lindo doutor…