Sufoca-me a luz trémula da noite,
Ficar sentado nas horas a olhar um ponto negro na parede, começo a encolher, emagreço, fico fumo suspenso na claridade, e em pedacinhos vagarosos entro no buraquinho de sombra, do outro lado da parede, o quarto desarrumado nas folhas esquecidas dos livros folheados pelo vento, o pijama escondido no guarda-fatos que me espera todas as noites, o travesseiro encostado à cabeceira da cama para me auxiliar na leitura, dispo-me, olho-me no espelho e dou-me conta que do outro lado não eu, não conheço este gajo, penso silenciosamente, vou tomar banho, da água sinto a mão da noite que me esfrega as costas encardidas pelas noites em Belém, o comboio apressadamente para Cascais, o cheiro do rio e dos barcos, as pilas em sossego no jardim, visto o pijama, visto o pijama e sento-me desordenadamente na cama, os óculos não me cabem na cabeça, sobre a mesa-de-cabeceira um livro que desconheço, juro por tudo que nunca o vi nem li nem peguei, de quem é este livro?, e estes óculos, estes óculos não são meus!, não consigo responder às perguntas que me faço,
Andamos ao vento, este não sou eu, este quarto não é meu, esta casa, de quem é esta casa?, e este livro?, e os óculos?, e as asas vagueiam nas luzes intermitentes dos cacilheiros, nunca deixou de trabalhar, as sirenes das fábricas no Barreiro em sinfonia escravatura, as pilas respondem à chamada na formatura, tu e tu e tu, para aquele Mercedes, tu e tu e ele, para o BMW preto, o cheiro destes gajos enjoa-me e os vómitos acordam em Alcântara e terminam nos Jerónimos, as pedras enjoam-me e as árvores enjoam-me e o rio enjoa-me, a cidade parece um terminal de cargas e descargas, corpos misturados na saliva pegajosa do desejo, carne traficada, compram-se mulheres, vendem-se homens, não consigo responder às perguntas que me faço,
Quem sou eu?, sessenta e cinco quilogramas de carne apodrecida nas cadeiras de madeira que rompem a solidão do espaço exíguo da capela onde ele se ajoelha, reza e discute com Deus, insulta-o, mas ele está simplesmente a cagar-se, simplesmente não o ouve,
Sufoca-me a luz trémula da noite,
E eu desejava repentinamente não ver a noite, e eu desejava repentinamente que o mar me entrasse pela janela, os barcos me entrassem pela janela, o rio me entrasse pela janela, abro a janela, silêncio absoluto, escuridão que caminha para mim de faca em punho, baixo-me e escondo-me junto ao rodapé, a faca percorre todo o soalho à minha procura, e eu, e eu que pensava que não era eu, eu tenho a feliz ideia de voltar a ser fumo suspenso na claridade e diluir-me no buraquinho de sombra, e novamente sentado frente ao portátil a ouvir The Doors,
Começo a estender-me e engordo…