Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

09
Jul 11

Sufoca-me a luz trémula da noite,

Ficar sentado nas horas a olhar um ponto negro na parede, começo a encolher, emagreço, fico fumo suspenso na claridade, e em pedacinhos vagarosos entro no buraquinho de sombra, do outro lado da parede, o quarto desarrumado nas folhas esquecidas dos livros folheados pelo vento, o pijama escondido no guarda-fatos que me espera todas as noites, o travesseiro encostado à cabeceira da cama para me auxiliar na leitura, dispo-me, olho-me no espelho e dou-me conta que do outro lado não eu, não conheço este gajo, penso silenciosamente, vou tomar banho, da água sinto a mão da noite que me esfrega as costas encardidas pelas noites em Belém, o comboio apressadamente para Cascais, o cheiro do rio e dos barcos, as pilas em sossego no jardim, visto o pijama, visto o pijama e sento-me desordenadamente na cama, os óculos não me cabem na cabeça, sobre a mesa-de-cabeceira um livro que desconheço, juro por tudo que nunca o vi nem li nem peguei, de quem é este livro?, e estes óculos, estes óculos não são meus!, não consigo responder às perguntas que me faço,

Andamos ao vento, este não sou eu, este quarto não é meu, esta casa, de quem é esta casa?, e este livro?, e os óculos?, e as asas vagueiam nas luzes intermitentes dos cacilheiros, nunca deixou de trabalhar, as sirenes das fábricas no Barreiro em sinfonia escravatura, as pilas respondem à chamada na formatura, tu e tu e tu, para aquele Mercedes, tu e tu e ele, para o BMW preto, o cheiro destes gajos enjoa-me e os vómitos acordam em Alcântara e terminam nos Jerónimos, as pedras enjoam-me e as árvores enjoam-me e o rio enjoa-me, a cidade parece um terminal de cargas e descargas, corpos misturados na saliva pegajosa do desejo, carne traficada, compram-se mulheres, vendem-se homens, não consigo responder às perguntas que me faço,

Quem sou eu?, sessenta e cinco quilogramas de carne apodrecida nas cadeiras de madeira que rompem a solidão do espaço exíguo da capela onde ele se ajoelha, reza e discute com Deus, insulta-o, mas ele está simplesmente a cagar-se, simplesmente não o ouve,

Sufoca-me a luz trémula da noite,

E eu desejava repentinamente não ver a noite, e eu desejava repentinamente que o mar me entrasse pela janela, os barcos me entrassem pela janela, o rio me entrasse pela janela, abro a janela, silêncio absoluto, escuridão que caminha para mim de faca em punho, baixo-me e escondo-me junto ao rodapé, a faca percorre todo o soalho à minha procura, e eu, e eu que pensava que não era eu, eu tenho a feliz ideia de voltar a ser fumo suspenso na claridade e diluir-me no buraquinho de sombra, e novamente sentado frente ao portátil a ouvir The Doors,

Começo a estender-me e engordo…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:32

São precisos mil braços

Para erguer o meu corpo do chão

E apenas dois abraços

Alimentam o meu coração,

 

Dois beijos para caminhar

E um sorriso para viver

Uma boca para eu beijar

E um corpo para escrever,

 

Mãos para me acariciar

Quando a noite desce da montanha fria e escura

E o rio não corre para o mar,

 

São precisos mil braços

E muita ternura

Para cessar os meus cansaços.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:30

Noite,

Dormir ensopado no sono

Erguer-me devagarinho e abraçar-me à janela

E olhar-me no espelho da rua,

 

Noite,

Se os teus lábios deitados na almofada

A pele silenciosa da tua mão

No meu ombro calcinado pela madrugada,

 

E da noite,

Gaivotas com cheiro a desejo

Poisadas na mesa-de-cabeceira

Junto aos meus óculos esfomeados de letras,

 

De palavras

Noite,

De sílabas

Noite.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:52

Ai senhor

Que fazeis vós

Nesta miserável casa

E semeada de ventos,

 

- Sombras, senhor, sombras,

 

Sem portas nem janelas

Despida no frio da serra

Senhor

Que fazeis debaixo do cobertor,

 

- Nada, senhor, nada,

 

E na parede um crucifixo

Misturado nas frestas

Nos velhos retratos de bolor

Que fazeis senhor,

 

- Ele olha-me, senhor, ele olha-me,

 

O canavial encostado ao rio, senhor, onde dormem corpos cobertos de espuma, silêncios de bruma, animal doméstico, o gato, senhor, as pétalas de rosa que mastiga ao pequeno-almoço, e em seguida, o sabor a alho, a terra misturada na saliva da tarde, o Fénix nos pulsos golpeados das árvores, batem à porta, senhor, carta registada e com aviso de recepção, o lápis suspenso na orelha, e senhor, os cigarros dormentes na mão de uma mulher, as gotinhas de suor que embaciam o fumo e o fumo deixa de ser fumo, então senhor?, o fumo nuvens de desespero, malmequeres adormecidos, raspadinhas no café da esquina, a saudável menstruação dos relógios a pinhas, ai senhor,

 

Ai senhor

As cadeiras e as gravatas

As correntes que amarram as pernas

E porquê senhor,

 

- Para não voares, senhor, para não voares,

 

E as pilhas na garganta da sanita, o vómito, porquê senhor?,

 

- Porque estais embriagado de palavras, senhor, porque estais embriagado de palavras.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:25

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