Falei e fui,
Ao homenzinho verde e de olhos castanhos dentro de uma caixa de cartão, malabarista de profissão, camafeu dos tempos modernos, trapezista nas horas mortas do dia, o peso do arame na sombra, o equilibrismo debaixo das nuvens, o capim que lhe comia os tornozelos e do fumo desaparecia no cacimbo, embondeiro grisalho sobre a cabeça espadaúda e tenra da tarde, jeremias seu nome, jeremias sou eu, gritava ele enquanto acenava ao público desdentado que assistia ao seu maravilhoso espetáculo, magnifico raquel, equilibrista russa que vive em Massamá, jeremias faz-lhe gestos obscenos com os olhos verdes, e ela num salto mortal manda-o foder literalmente,
- E já foste,
Desequilibra-se do arame, bate as asas e cornadura sobre o tapete vermelho, desdentados em palmas, jeremias a tremer como se fosse o nevoeiro junto ao tejo, tejo?, e onde se lê tejo deve ler-se douro, errata, o livro de apontamentos misturado no papel higiénico, e jeremias sabe que os seus textos são uma merda,
- Os meus textos são uma merda, repete ele quantas vezes consegue na voz distorcida das pernas finas e amolgadas do espetáculo,
A aparelhagem sonora engasga-se nas coxas da raquel trapezista, e como se fosse um líquido pegajoso entranha-se nas mãos embaciadas de pó talco, jeremias cospe para a parede e escreve repetidamente “OS MEUS TEXTOS E POEMAS SÃO UMA MERDA”,
- Pois são, em gemidos a raquel magricelas que nas mamas pendura um fio de nylon e um anzol,
E para que servem os alfinetes?, mergulha a cabecinha no escuro jeremias, e alguém do público, um desdentado lhe explica que os alfinetes servem para o big-bang,
- Big quê, Foda-se, que é essa merda?, o apresentador do espetáculo na pasmaceira do costume,
Ninguém sabe, e também não interessa,
- O que interessa é a aparência, a raquel com a aparelhagem sonora aparafusada às coxas da noite,
O que interessa é a aparência?, questiono-me eu, questiona-se jeremias, e o que está dentro da casa não serve para nada, caralho?, a irritação da voz do apresentador, só interessa a fachada da casa?, digo eu, e o conforto dos compartimentos, caralho?, grita jeremias para a tenda de circo,
- Falei e fui,
E voltei a vir de mãos vazias, a fila interminável de cabecinhas verdes nos assuntos da repartição, senha trinta e cinco, ouve-se uma voz esganiçada e encrustada nas algas do rio, e a minha senha é a número quinhentos e sessenta e cinco, e é só fazer as contas, quinhentos e sessenta e cinco subtraindo trinta e cinco, coço o pelo rapado da cabeça, e coço, e o raio do resultado fica-me preso na garganta,
- Quinhentos e trinta, a voz da raquel enquanto coloca na vertical os anzois pendurados nas mamas,
Claro que são quinhentos e trinta, eu sabia, só que os números entalaram-se entre uma côdea de pão e três dedos de fumo, e só amanhã ao final da tarde, isto é, só amanhã ao final da tarde se nada de grave acontecer,
- E o que poderá acontecer?, jeremias com os beiços entalados no arame do trapézio,
E tanta coisa que pode acontecer, cair um meteorito, levar com a peça de um avião nos cornos, levar com o próprio avião nos cornos, e é mais difícil acertar na chave do euromilhões, dizem os doutores da estatística,
- É mais difícil acertar na chave do euromilhões do que levar com um avião na cornadura?, questiona-se o apresentador,
E nem mais, nem mais.
Grita o público desdentado.