Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

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Jul 11

Nos ossos amargos da vida,

O veleiro com um rombo no casco, a água salgada da tarde, o vento agreste das montanhas de solidão, e eu, e eu olho-o indiferente e sorri-o, penso em voz alta, não quero saber de barcos, escrevo nas paredes da minha dor, não me interessam as montanhas de solidão, E o que te interessa?,

- Vinte e nove por cento não sabe ou não responde, o António a folhear as páginas do jornal,

E eu sinceramente não sei o que me interessa!,

O António desiludido com as notícias “MARIDO DEGOLA EX-MULHER”, “MULTIBANCO ENVENENADO COM GÁS”, e num aceno violento amarrota uma a uma as páginas do jornal e coloca-as no cesto dos papeis, e segreda-me, por hoje chega, estou farto destas merdas, Só desgraças neste país?,

- Motivo, ciúmes,

Interessa-me que não me interessa porque me interessa!, Nada?, nada, rigorosamente nada, respondo-lhe eu,

- E nem o mar?,

Nem o mar consegue entrar na minha janela, canso-me, mergulho a cabeça nas sombras da casa quando sobre a mesa-de-cabeceira em buscas amarguradas tento encontrar os óculos da madrugada, pego no livro de poemas de Al Berto e leio repetidamente o poema onde ele, “O mar entra pela janela”, e foda-se, pouso o livro, adormeço os óculos e cruzo os braços, olho para a janela, E o que vês?, O que eu vejo?, um cortinado de pano pendurado nos anos, E onde está o mar?, Sim, o mar?, espero, espero, espero, E eu que acreditava no poeta Al Berto, acreditava mesmo,

- Desiludiu-me, porque o mar não entrou pela janela, porque o mar não entra pela janela,

Mas eu li, Caralho!, Li com estes olhos que a terra vai comer, “O mar entra pela janela”, e Sabes?,

- Não, diz,

Nunca mais acredito em ninguém, nunca mais!,

Nem em padres, nem em deus, nem em poetas, nem em escritores,

Nos ossos amargos da vida,

O veleiro com um rombo no casco, a água salgada da tarde, o vento agreste das montanhas de solidão, e o António sentado numa cadeira a brincar com um moinho de vento,

- Mar, Mar, vem cá mar,

E o mar decididamente não ouve o António, e o mar decididamente não me entra pela janela, e talvez, sim, e talvez nunca venha a entrar,

Mentiram-me.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:44

Francisco,

Sim pai!, promete-me que quando eu morrer colocas as minhas cinzas no mar, Sim pai!, prometo, Prometes mesmo?, sim, não se preocupe, e agora não posso deixar de cumprir a promessa, e o vento levou-me as cinzas, paciência, e ele pensava, tanto faz, cinzas com água ou cinzas com terra, deve ser tudo igual,

 

De boca aberta deixa as pombas comerem a comida, estúpido de cão, tão parvo, e tão parvo, estúpidos de pássaros semeados no meu quintal, estúpidas de pombas que comem os insetos pequeníssimos que poisam no casaco do meu cão, e estúpida esta tarde de Julho,

- Francisco, Regaste as alfaces?, e eu respondo-lhe que sim, Sim pai, reguei!, e claro que me esqueci das alfaces, Porra, eu nem sabia que tínhamos alfaces…,

Temos alfaces, Pai?, junto à bananeira, rés-do-chão direito, Exatamente pai!, desculpe, confundi as horas, Estão regadas, não se preocupe,

- O que eu pensava que eram ervas, afinal são alfaces, meditava o Francisco,

A vida, pai!, O que tem, filho?, Não faz sentido, Percebe?, não, não percebe, não, não percebo, repare, digo-lhe eu, repare, pai, nascer crescer e morrer, E depois?, Que prazer, pai, que prazer tem deus de nos dar vida e depois, e depois, pai, depois voltar a tirá-la?, Isso é muito complicado para a minha cabeça, o  que me preocupa são as alfaces,

- Malditas pombas que comem a comida toda do cão, gritava o meu pai da cama,

Francisco,

Sim pai!, Já foste ao correio hoje?, Sim, pai, E então?, nada, Nada?, sim, pai, nada, hoje não houve correio, Greve?, Não, pai!, ninguém nos escreve, sussurra o Francisco nas meditações no corredor, ninguém, pai, ninguém, só pombas esfomeadas a devorarem a comida do cão, nada mais que isso,

- Nada mais que isso a tarde estúpida de Julho, os malmequeres no jardim que me olham, a corda pendurada nas traseiras da casa, a as alfaces enforcam-se, pai, as alfaces entaladas nas frestas da tarde, E sabe, pai!,

Sim, filho!,

Hoje estou triste.

Porquê, filho?

Pai, desculpe-me!, prometi deitar as suas cinzas no mar, e veio o vento, sim filho, veio o vento e levou-as, penso, não tenho a certeza, as palavras sulfatadas do Francisco, penso que as suas cinzas caíram no chão gretado da terra,

- Deixa lá, meu filho, deixa lá,

Responde-me ele, no mar ou na terra deve ser tudo igual. São cinzas.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 18:14

O amor

Fazer o amor na tela do mar

Pincelar o céu com a mão

E beijar a flor,

 

A noite que não se cansa de brilhar!

 

O amor

Simples palavras em sorrisos emagrecidos

Abraços cansados

Nos lábios em dor,

 

A noite trémula dos corpos despidos!

 

O amor

Dois corpos misturados no céu-da-boca

Dois lábios esquecidos na alvorada

Dois braços que se prendem à obra do pintor,

 

A noite louca!

 

O amor,

 

Nos olhos do coração

Quando dos livros cansados

Emergem pedacinhos de suor na calçada.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:33
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As estrelas,

Pintadas de fresco no teto da sala, a placa metalizada onde se lia “não tocar”, frente aos correios o banco de jardim em madeira engolido pelos anos e anos e anos, e foi há tanto tempo, “não tocar”, e ele tocou, a mão impressa numa nuvem de fumo, os cigarros quando acordam mal dispostos e a dor no estômago, o batimento das ripas de pinho entre os parafusos das tuas coxas, recorda-se ele, as conversas que tínhamos, murmura a silaba folheando livros e acariciando a pétala de rosa que o ponto de interrogação de ofereceu, há tanto tempo, e foi há tanto tempo que as estrelas deixaram de se embrulhar nos lençóis de sombra da tarde, e da noite, e da noite depois da noite, na madrugada,

- Kafka embainhado no PROCESSO, e os olhos da vogal tingiam-se de negro,

A silaba em gemidos de desejo nas mãos do ponto de interrogação, um silencioso Ai despe-se e os seios em queda livre no peito dele, a mão direita do ponto de interrogação em palmos milimétricos, percorrem a pele fina e escura da silaba, uma pausa no umbigo, abre o vidro e lança a beata de cigarro de encontro ao pavimento do envelhecido paralelo granítico, fecha o vidro, destrava a mão e em acelerações de lesma recomeça a viagem até ao púbis encolhido nas calças de ganga, um obstáculo, e a mão entalada no cinto de couro,

- E agora?, pensa o ponto de interrogação,

A mão emagrece e contorna o obstáculo, a silaba em gemidos aumentados, PÁRA, POR FAVOR, eu começo a reduzir a velocidade até me imobilizar numa zona semeada de arbustos espessos, A relva do jardim?, o ponto de exclamação que ia a passar nesse momento acena-me com a cabeça que não, não é relva, POR FAVOR, PÁRA, e eu pensava, Eu estou parado!,

- A mão desprega-se do meu corpo e entra dentro das calças dele, e desgovernada como um automóvel pela rabina até ao rio, cambalhotas e cambalhotas, e quase quando ela chega à água finíssima do douro, uma coisa cilíndrica grossa e dura, o xisto humedecido sobre as fendas da terra,

Entro na garganta das coxas dela, e a silaba uma enguia quando sai do rio, a silaba suspira e transpira, a silaba engolida pelo ponto de interrogação, a frase move-se no texto encolhido na noite, a frase um amontoado de gemidos e latidos, e do texto pedacinhos de letras começam a saltitar, o xisto humedecido sobre as fendas da terra, e os minutos intermináveis de silêncio,

- Kafka era louco, a vogal para mim,

O ponto de exclamação diz que não, estrelas pintadas de fresco no teto da sala, Se estou a vê-las!, e eu não acredito nas palavras da vogal,

- Era só o que faltava, estrelas pintadas de fresco no teto da sala!,

Frente aos correios o banco de jardim em madeira engolido pelos anos e anos e anos, e foi há tanto tempo, e foi há tanto tempo que a primavera deixou de viver…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 14:07

Junto ao abismo,

Forçosamente percebe que se der um passo

Cai majestosamente rabina abaixo

O vento suspende-se e o corpo dele ingrime

No dia de amanhã,

 

Vou não vou

Ele debate-se com o dilema do desconhecido

E pergunta-se e grita à garganta da encosta

O que faço?

 

A sombra decide lançar-se

Cerra os olhos

Coloca as mãos entrelaçadas no peito…

E o que for é,

 

Em queda livre,

Nove virgula oito metros por segundo quadrado

E enquanto a gravidade puxa a sombra

O corpo fica suspenso na tarde

E arrepende-se,

 

Solicita à grua das nuvens

Que levante a sombra suicida

Mas a sombra em fintas e curvas

Vê-se livre da grua,

 

E a queda é inevitável

Os ossos da sombra estatelados nos pedregulhos

Do silêncio junto ao rio

O corpo em lágrimas,

 

No chão,

Duzentos e seis ossos semeados no rio

Trinta e dois dentes fincados nas algas

Como se fossem o pôr-do-sol

Quando o sol se afunda no horizonte,

 

A sombra morre

Causa da morte impressa na noite

Solidão e desespero

Doença comum,

 

O corpo órfão da sombra

Uma rotação de cento e oitenta graus

E as pernas em passos de caracol

Afastam-se do abismo.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:10

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