Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

16
Jul 11

O som das teclas da máquina de escrever,

A janela com a boca aberta para a noite que começa a descer da serra, no teto uma lâmpada engasgada conforme o tio serafim liga e desliga o moinho elétrico, e sobre a mesa, junto ao teclado mecânico da máquina de escrever, cerveja, alguns livros, folhas dispersas e amontoadas, e um rádio que se afoga no oceano pacifico,

 

- Minha querida,

Acreditava que o silêncio não existia, mas confesso-te que estava errado, Como assim Pergunta-me ela, o silêncio existe e eu estou abraçado a ele, poiso os cotovelos sobre o peitoril e seguro a cabeça com as duas mãos, olho, E o que vejo?, a noite, as estrelas, a lua que me olha e a sombra do milho onde brincam ratinhos às escondidas, nada mais do que isto, Acreditas?, e vê tu que até consigo ouvir o ressonar da trombose do avô domingos que agonia sobre a cama no quarto ao lado, desculpa-me os passos lentos das minhas palavras mas às vezes as teclas da máquina prendem-se à pouca luminosidade, outras vezes, outras vezes são as moscas que saltitam sobre as teclas e sou forçado aos erros de ortografia, e também, e também só daqui a muitos anos é que entrará em vigor o futuro acordo ortográfico, Aquele? Lamenta-se ela, sim minha querida, aquele que me come o C do teto, porque neste momento a lâmpada está pendurada no tecto, e amanhã, daqui a muitas manhãs, a mesma lâmpada pendurada no teto, mas adiante, depois falamos nisso,

 

Faço uma pausa na escrita, numa golada à garrafa de cerveja volto a pendurar-me na janela de olhos abertos para a serra, oiço o som melodioso dos grilos e de outros bichos que desconheço o nome, o quarto começa a escurecer, e vem-me logo à ideia, Lá anda o tio serafim com o moinho aos tombos e os grãozinhos de trigo esmagados na penumbra da noite!, e daqui estou a ouvi-lo  rosnar ao fundo da terra do avô domingos, e cinquenta metros separam as duas casas ensonadas e velhas,

 

Voltando à tua carta, minha querida, a noite aqui não tem fim, e eu gostava que fosse sempre assim, Sempre noite?, pergunta-me ela, sim, sempre noite, sempre esta noite virada para a serra, o cheiro da terra molhada da rega do fim da tarde, a água sempre a brotar para o tanque e a sumir-se na terra, e de hora a hora o maldito sino da igreja em horários noturnos, e olha, outro C que acaba de ser comido, espera-me só um pouquinho, Sim?, não demoro,

 

Uma mão em velocidade sobre a mesa e uma mosca acaba de pôr termo à vida, e eu começo a imaginar as tuas pieguices, Francisco, matar uma mosca é crime!, punível com pena de prisão até quinze anos, e que se lixe penso eu, menos uma em brincadeiras nas teclas da máquina, os cigarros chamam-me e volto à janela, e perco os olhos na escuridão, e repentinamente diante de mim todas as palavras que tenho para te dizer, todas,

 

Desculpa, minha querida,

São quase três horas e não tenho sono, e depois de terminar esta carta talvez ainda vá ler alguma coisa, O que estás a ler?, ela na minha direção, e mais um C, O que estou a ler?, daqui a muitos anos, daqui a muitos anos eu a ler António Lobo Antunes “Auto dos Danados”, e possivelmente ele ainda não o tenha escrito, ela com o sorriso a fugir-me da sombra, e eu respondo, possivelmente não,

 

E tens a certeza que posso vir a ser condenado por matar uma mosca?, e ela responde-me que sim, e eu penso, malditos ecologistas e ambientalistas, e era só o que me faltava,

 

E tenho a certeza que não, e não sei, porque O Auto dos Danados é de 1985, e possivelmente ande com ele aos tombos nas teclas de uma máquina de escrever, e desculpa minha querida, vou ter de terminar, os dedos começam a perder-se no sorriso da janela,

Espero que estejas bem,

Um beijo.

 

E era só o que me faltava, Eu preso, eu preso por matar uma mosca, mas enfim, e as pálpebras a fecharem-se-me em pedacinhos como papel de máquina, retiro a folha, passo-lhe em momentos de seda os olhos, coloco a tampa na máquina de escrever, levanto-me e vou até à direção da janela, e outro C comido, puxo de um cigarro e fico esquecido a olhar a serra.

Acorda a manhã.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:27

Apalpam-lhe as nalgas

Derrama um Ai sobre a mesa

Cruza silenciosamente os braços

Puxa de um cigarro vadio

Pega no copo de uísque

E vê duas pedras de gelo com cio

Duas gajas que se lambem

No seio do álcool

 

Dois lábios

Comem outros lábios

Dois púbis

Entrelaçam-se nos lençóis da tarde

 

Dois gajos que se beijam

E duas gajas que se apalpam,

 

Apalpam-lhe as nalgas

Derrama um Ai sobre a mesa

Cruza silenciosamente os braços

 

E as pilas dos gajos murcham

E os púbis das gajas dentro do copo de uísque

Bebe o uísque

E come as gajas de gelo

 

Cambaleia na sombra da rua

Agarra-se ao candeeiro que cresce entre as pernas

É assim a vida noturna

De dois gajos e duas gajas e um copo de uísque…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:59
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Não espero nada da vida.

Pausa,

Um momento de silêncio

A mão que se encosta ao meu rosto

E uma árvore que me abraça

Nas cinzas dos teus olhos,

Nem a vida espera nada de mim.

Recomeço,

Pregado aos lençóis

Esquecido no mar como se fosse um barco

Eu feito de aço

Com a ferrugem dos meses na minha pele,

Fim.

Os anos a engolirem-me e eu dentro do estômago dos dias,

As mãos e as pernas deixam de existir

As coxas da maré em fios de sémen

E o que resta de mim, pouca coisa,

O alimento das gaivotas com forme,

A vida é uma merda.

Deixei de existir,

O oxigénio em migalhas de sofrimento

E nos meus pulmões cigarros sepultados

O fumo à minha volta como a neblina

Quando os barcos se perdem no rio,

O farol na busca do que resta do meu corpo.

Espuma sobre a água,

Os seios do pôr-do-sol no fim da tarde

O púbis das nuvens em gemidos orgânicos

Gotinhas de desejo desprendem-se dos teus lábios

E sinto que a tua mão me procura na sombra da vida.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:49

Há-de haver uma cidade

Numa rua inventada

Uma mulher desejada

Numa cama deitada

Há-de haver uma cidade

Numa rua empedrada,

 

Há-de haver uma cidade

Nos seios da mulher deitada

Há-de haver uma cidade

Nas coxas da mulher amada,

 

Há-de haver uma cidade

Numa rua cansada

Onde poisa a mulher ensonada

Do néon a gaivota evaporada

Há-de haver uma cidade

Numa rua inventada,

 

Há-de haver uma cidade

Em cada mulher apaixonada

Com ruas de verdade

E sorrisos na madrugada,

 

Há-de haver uma cidade

Numa rua inventada

Com barcos na alvorada

E silêncios de nada

Há-de haver uma cidade

Em ti mulher desejada.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:51

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