Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Jul 11

Quando o espelho nos mente,

E o corpo de farsas suspensas na neblina, sombras na tela da vida que escurecem com o passar dos dias, a insignificância e infeliz permanência no planeta terra, há quem lhe chame destino, divindade de deus, eu chamo-lhe vida de merda,

 

A manhã acorda emagrecida nos pregos que seguram as tábuas do barraco, finíssimos fios de luz atravessam-no e do interior escuro a penumbra miséria do colchão sobre os tijolos roubados na obra do vizinho, na mesa-de-cabeceira o cinzeiro em desespero abarrotado de beatas e pedacinhos de saliva com tuberculose, mais ao lado o candeeiro de petróleo extinguido por falta de combustível e que ilumina as frias noites do barraco, as migalhas de pão para entreter os pássaros pela madrugada no pavimento cultivado de teias de aranha, as formigas em suicídio coletivo junto ao frasco vazio e no rótulo em letra de ardósia está escrito “açúcar”, abro os olhos e a desilusão, mais uma para a coleção, Sinto que estou vivo!, e ele a conversar com o espelho embaciado pela ferrugem das dobradiças caquéticas das janelas, a desilusão de mais um dia, a desilusão de olhar no pulso os ponteiros em decomposição, o cheiro horrendo dos ratos à procura do meu corpo, e desistem, não lhes serve, um deles de dentes encostados à migalha de pão com o queijo trazido da rua, e revindica melhores condições de trabalho, a ASAE com o relatório do encerramento do barraco,

- Esta espelunca nem para ratos, Encerrado para obras, o letreiro sobre a porta,

O homem com a ardósia aparafusada nas costas diz-me que se eu não executar as obras dentro do prazo estipulado o barraco tomba ravina abaixo, e o espelho mente-me,

- Abraça-me, sorri-me a teia de aranha agarrada às mãos do autoclismo, olho a sanita atolada até ao teto, o homem pergunta-me se tenho água potável, e eu respondo-lhe que água só quando chove, e a teia de aranha responde  ao homem, Somos felizes assim!,

Somos?, pergunto eu ao espelho, inclino-me na manhã e olho os caibros carbonizados da cobertura, o céu entra-me dentro do barraco, e o sol deita-se sobre a mesa de três pernas, o homem da ardósia,

- Só tem três pernas a mesa?, sim, a outra guisei-a na semana passada,

E gafanhotos sobre o peitoril na ginástica matinal, batata-doce e uma pitada de solidão e a panela no lume do infinito acordar e descobrir que se está vivo, olhar o espelho e sobre a cabeça os ramos da amoreira de risca ao meio, nas sobrancelhas a densidade de comer aboboras misturadas com peixe salgado, enlouqueço,

- Duas semanas e ficará como novo, o doutor dos malucos para mim, Não se preocupe!, o doutor para mim, acredite, eu sou mais louco que o senhor,

As ratazanas começam o pequeno-almoço nos meus pés e as abelhas terminam o jantar nas pétalas do meu cabelo, a enfermeira masturba-se com os comprimidos para dormir, as órbitas em rotações lentas, deita a cabeça no meu colo, e fica-se nos orgasmos do sono, o doutor dos malucos segreda-me que está farto de ver pessoas, árvores, casas, pássaros, camisolas do Benfica, barcos, o mar, o céu, as nuvens e deus, e eu não percebo as palavras dele, dá-me cigarros para diminuir o comprimento de onda da minha pila, e eu fumo, e eu fumo, e ela mistura-se no saibro debaixo dos pinheiros,

- A enfermaria acorrenta-se à sombra de um triciclo, a enfermeira nos sonhos a semear púbis junto ao mar, e ouço-lhe o som do mar,

Olho pela janela e o meu barraco em cartão desfaz-se no vento do fim de tarde, o petroleiro com gripe agride com um pontapé o doutor dos malucos, e o doutor dos malucos continua a segredar-me que se pudesse escondia-se no centro da terra, eu repondo-lhe que se pudesse também me escondia, mas não posso, Porquê?,

- Tenho uma enfermeira em orgasmos de sono deitada no meu colo, Adormeceu!, diz ele ao doutor dos malucos,

O petroleiro não satisfeito com o pontapé que imprimiu no doutor dos malucos agarra na enfermeira pelos cabelos e deposita-a no banco de jardim onde me sento todas as noite,

- Quem disse que este gajo tinha gripe só pode estar maluco, queixa-se o doutor dos malucos, e manda chamar o segurança, agarrem, agarrem que é maluco,

O petroleiro em curvas apertadas passa por mim, passa pelo doutor, e passa pelo segurança, pula a janela e volta para o mar,

E eu penso, E se eu fizesse o mesmo?,

Acabavam-se os dias de miséria!

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:57

Os eletrões dos teus olhos

A trezentos mil quilómetros por segundo

E no buraco negro da minha boca

A matéria agarrada às paredes da garganta

 

Os eletrões entram no meu buraco negro

E desaparecem como pássaros ao amanhecer

Morrem as estrelas

E da luz acorda o esqueleto da gravidade

 

E quando olho a estrela que morre

A estrela já morta há milhões de anos…

E se eu já tivesse morrido

E a imagem da minha morte perdida no infinito?

publicado por Francisco Luís Fontinha às 17:04

O mar onde navego

Enfurecido poço de miséria

Os meus braços cessam na sombra de uma nuvem

E os meus dias perdem-se no cansaço dos barcos

 

Nos anzois da garganta

O vento entope-me os pulmões de areia

E no sal da água o meu corpo flutua

Numa dança de nevoeiro

 

Cigarros que me entram na boca desesperada

E na cinza brinca uma criança à sombra de uma árvore

Triste e magoada

Com fome e sede e vontade de acordar

 

O mar onde navego

Enfurecido poço de miséria

E do lodo da noite

Emerge a tua boca em pedacinhos de nada…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:06

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