Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

23
Jul 11

E o vento deixou de soprar,

 

Os olhos dela que se alimentam das flores selvagens quando da montanha as palavras que se escrevem no chão como na velha e poeirenta ardósia da escola, incham e dilatam-se na sombra, e debaixo do musgo um infinito mundo de vida, as formigas penduradas nas letras do abecedário e nas linhas do destino o texto cresce, e torna-se livro, e mais tarde alguém o utiliza na lareira silenciosa da cabana junto ao rio,

 

Terra à vista, terra à vista, uma voz da multidão em gritos de águia, e a ilha Espanhola afunda-se-me nos olhos minguados dos meus seis anos de idade,

 

A esplanada sobe o poste de iluminação, e a lâmpada desce no seu vagar noturno até ancorar nas asas do tejo, do bico suspende-se um cacilheiro em manobras de diversão, a lareira da cabana sorri à mulher seminua que se passeia pela sala e do pavimento um livro disfarçado de cavaco à espera de ser lançado na fogueira,

 

Porquê? Pergunto-lhe eu, porquê margarida sabendo tu que eu amo os livros, ela abana-me a cabeça, disfarça o sorriso e nos lábios guarda um velhíssimo poema que construí no jardim à sombra dos velhos plátanos, e ela responde-me que eu é que envelheci porque os plátanos continuam no mesmo sítio e com as mesmas folhas, novas e alegres,

 

E talvez tenha sido eu que envelheci,

 

Talvez.

 

A ilha Espanhola em círculos concêntricos em volta de um sorriso magoado pelo poema mal construído, a voz dela inscrita nas minhas costas, Desculpa o que te vou dizer mas tu à sombra dos plátanos não sabias escrever!, respondo-lhe que sim, e tens razão digo-lhe eu, não sabia e ainda hoje não sei, não é qualquer um que sabe escrever, e eu, infelizmente não sei escrever…

 

Não chores!

 

Um dos seios espreita-me, e a esplanada acaba de descer do poste de iluminação, o cacilheiro atraca na Trafaria recheado de corpos imundos no suor do riso da tarde, e na montanha, dentro da cabana, ele esquecido nos cigarros e indeciso, não sabe se deita a mão ao seio ou salva o livro da lareira,

 

Talvez.

 

Talvez a ilha Espanhola nunca tenha existido, talvez os olhos minguados dos meus seis anos de idade também nunca tenham existido, e talvez, não sei, talvez nunca tenha existido poema mal construído nem montanha nem cabana nem plátanos nem ela nem seios nem livros na fogueira,

 

Talvez a única verdade seja uma esplanada alicerçada a um poste de iluminação e que se perdia nos sorrisos do tejo,

 

A esplanada subia, a lâmpada descia para esticar as pernas e fumar um cigarro, e o cacilheiro, esse, em travessias loucas entre Belém e Trafaria.

 

E no final do dia o enjoo quando acordava a noite, e o vento, o vento tinha deixado de soprar…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:50

O cachimbo de água

Alicerçado na finíssima pele da madrugada

O fumo impresso em mágoa

No odor da manhã evaporada,

 

Do silício que abraça a minha mão

Um segundo de nada

O ronco do coração

O feitiço da calçada,

 

O cachimbo de água que mergulha nas palavras incompreendidas

Do corpo o meu silêncio em desejo

No corpo as silabas encardidas,

 

O cachimbo de água é meu

Quando procuro e não vejo

As estrelas no céu.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:43

Tenho livros para ler, tenho livros para olhar, e dentro de mim nascem palavras que se cansam numa folha de papel impressa na impressora da tarde, tenho comida (pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar), e cama para dormir, e quanto a doenças as pequenas enxaquecas de um tipo de quarenta e cinco anos, depressão alguma e quase nada, e pouca coisa, e quanto dinheiro na algibeira as migalhas do costume,

 

De que me queixo?

Absolutamente de nada.

 

Tenho tudo comparado com os que não têm nada. Há quem não tenha comida, há quem lute desesperadamente pela vida, há quem não tenha casa nem cama para dormir, e há quem não tenha família, e eu, e eu orgulho-me de ter uma, há quem não tenha mulher para amar, e eu tenho uma e sou amado, e há quem não seja amado.

 

E há aqueles que não tendo comida, casa para viver, cama para dormir, família para abraçar, livros para ler e olhar, e que dentro deles não nascem palavras para escrever, e a doença come-os em pedacinhos a cada vinte e quatro horas do dia, e mesmo assim, mesmo assim lutam para viver.

 

E eu revolto-me porque não tenho um trabalho. E eles caralho? E eles que não têm nada?

 

E eu, estupidamente me queixo e me lamento.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:05

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