O fim de semana em pedacinhos sobre o lençol da tarde,
O teto que desce e se aninha sobre o mosaico transparente do jardim das acácias, os olhos decadentes da nuvem sobre o paiol de seiva, em silêncio, sobre a mesa, as mandibulas dos cravos poisadas na jarra virada para a janela,
A voz do homem,
Acorrento-me à tarde com a esperança que das ruas cresçam palhaços nos sorrisos das crianças que mendigam junto à igreja, o sol que só nasce para alguns, a injustiça, alguém chora, alguém sorri, uns com comida, outros, outros sem comida, e outros como eu que escrevem e se acham uns desgraçadinhos por não terem trabalho mas têm comida e cama para dormir, os pássaros que voam, os pássaros que não sabem voar, a chuva, e a alegria da manhã, os pássaros que não sabem voar nos dentes do canino, a minha revolta, as tripas de fora e nada posso fazer, olhar, indiferente, e esperar que morra, e caixote do lixo,
A voz da mulher,
Farta de ti, cansada das tuas mãos e da tua boca, dos teus braços e tudo em ti me inerva, até a tua própria sombra quando junto à noite entras em casa, imprimes um beijo na minha face e perguntas-me, Como foi o teu dia!, e eu no silêncio do candeeiro de parede Uma merda, a mesma merda de sempre, os transportes, o maldito comboio sempre engarrafado de gente e em paragens sucessivas, o rio que me acompanha até Cais de Sodré e mudo de rumo, a lagarta voadora debaixo da terra, e mais um engarrafamento de gente, o trabalho, os problemas de sempre, a merda de sempre,
A voz do miúdo,
O miúdo por falta de pagamento perdeu a voz,
A voz da professora,
Estou farta destes gajos,
A voz do padre,
Deus está dentro de nós, vê tudo e ouve tudo,
A voz das lésbicas no cansaço da noite,
As silabas mastigadas no silêncio do desejo, o poema flui sobre a pele macia do papel, os púbis que se beijam quando pela janela entra o suor humedecido da noite, os seios suspensos nas coxas, e um umbigo que se dissolve nos lábios, e uma das bocas que caminha no pescoço na procura de vogais, as letras escorrem pelas pernas, e o homem pergunta-se, E deus, que faz deus, olha-as, sorri-lhes ou fecha os olhos, ou simplesmente se esconde…
A voz do miúdo,
Efetuaram-me um carregamento de cinco euros, cinco euros de palavras, E isto dá para quê?, e a mulher responde-lhe que talvez dê para E onde estava ele quando o meu pai ficou desempregado e a minha mãe fugiu de casa?, ainda dá para Não me levou?!, já não dá, responde-lhe a mulher,
A voz do padre,
Deus pai dos céus, tende piedade de nós,
A voz da mulher,
Estou cansada deste marido imbecil e ordinário, e às vezes penso, E não seria melhor ter partido as duas pernas quando conheci este gajo nojento?,
A voz de deus,
Todos temos a nossa cruz, minha filha,
A voz do miúdo,
Deixou de se ouvir no saldo da noite,
A voz da mulher,
Cruz, meu deus?, Uma cruz bem pesada,
A voz das lésbicas no cansaço da noite,
Dorme bem meu amor,
A voz do padre,
No dia do juízo, livrai-nos senhor,
A voz do homem,
Cerro a janela e puxo vagarosamente o cortinado, ouço um fio de sémen que se dissipa de uma frincha da parede, a luz ténue da noite extingue-se junto ao rodapé, no soalho passeia um morcego à procura das minhas pernas, morde-me os tornozelos, de dentro de mim solta-se um Ai, e deus diz-me baixinho,
- Nunca deixes de acreditar, e por favor, não desistas agora…
Baixo os olhos e vejo o morcego preso às minhas calças de ganga, e dos finíssimos dentes escorre uma pequeníssima pétala de sangue, desaparafuso a perna e atiro-a contra a parede, e o morcego gravado nas sombras do guarda fatos, e respondo a deus, Obrigado!
(este texto é de ficção e não tem o intuito de ofender alguém)