Há qualquer coisa de estranho,
E que se entranha no meu corpo como as ervas do terreiro, o mar deixou de ter ondas e o vento cansou-se de soprar, as árvores adormeceram eternamente nas sombras da noite, e os pássaros suicidam-se contra os postes de iluminação, há qualquer coisa de estranho que me puxa para dentro da terra, e o buraco negro da vida engole a minha massa e a luz torna-se opaca, e os meus olhos emagrecem nas pedras calibradas das ruas de mãos entrelaçadas na poeira da lua, há qualquer coisa de estranho quando incendeio o quarto de eletrões, quando abro a janela e em vez de olhar o mar vejo uma parede invisível que me tapa a paisagem, o teto começa a descer e eu começo a encolher e as paredes começam a vibrar e em frestas desfazem-se em migalhas de pão,
- Há qualquer coisa de estranho quando os pedacinhos do almoço se interrogam no talher e as mãos começam a inchar, levantam-se da mesa guardanapos com gripe e a água em escuridões de azoto evapora-se do copo amargurado, o peito em saliva dilata-se nas nuvens antes da chuva miudinha, pieguices modernas, loucuras de hoje, o almoço amarrotado nos intestinos como se fosse o xisto da vinha, e os cachos de uvas agridem-se em bofetadas de mel, o doutor levanta os olhos, olha-o e diz-lhe que ele só pode estar louco,
Sinto muito mas o senhor está maluco, o homem discute e argumenta que não, e o doutor continua a explicar-lhe O senhor precisa de ser internado!, e o homem pergunta-lhe Porquê?,
- O senhor não distingue a realidade do sonho!, o homem enfurece-se e pergunta-lhe que se explique O senhor doutor explique-me lá isso muito bem!, O seu problema é que não distingue a realidade do sonho, isto é, ao sonho chama realidade e à realidade sonho,
Não percebi responde-lhe o homem,
- O senhor vive dentro de um sonho, Percebe?, e eu, finjo que sim, Percebi!, O senhor construiu um sonho onde está sem trabalho e sem dinheiro Entende-me?, Espere aí doutor, espere aí, Quer dizer que não estou desempregado e sem dinheiro?, Claro que não homem é tudo um sonho…
Desculpe-me doutor mas não percebi, eu sei que sou um pouco estúpido mas é-me difícil perceber o que o doutor está para aí a escrevinhar na ardósia, Não se preocupe, uns dias em isolamento na enfermaria e tudo volta ao normal!, Normal? Que normal?, ao normal explica-lhe o doutor dos malucos,
- Volta ao seu emprego, E qual era?, O senhor é administrador de uma empresa do burgo, Ai sou!, É, e ganha muito bem, Ganho?, claro que sim responde-lhe o doutor,
Há qualquer coisa de estranho quando releio este texto encostado aos umbrais do silêncio, o doutor dos malucos sentado à minha beira a fabricar papagaios de papel e eu entretido nas fotografias a olhar o mar de luanda, os cordéis enrodilham-se nos tornozelos da secretária e uma nuvem sorri da fotografia, batem à porta,
- O senhor administrador e o senhor doutor dos malucos ao refeitório se fazem favor, em voz grossa o enfermeiro,
E o estranho é que chovia em agosto, e era noite, e o jantar meia dúzia de pilulas a dividir por dois…