Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

29
Jul 11

Diário de bordo,

 

A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante, trapezistas, malabaristas, palhaços, e de tudo o mais, tudo a que estamos habituados a assistir nos dias tranquilos da ilha, e feras indomáveis com pelo de caracol penteado de adamastor quando o vento incorre pela montanha e desagua no número treze da avenida principal, e sua excelência EL Rei passeia-se no seu majestoso equídeo de pele cinzenta e dentes de marfim, e fazendo uma pequeníssima interrupção para explicar que pelo e pêlo são a mesma treta e portanto não se assustem com os erros de ortografia, El Rei passeia-se pelo burgo na companhia de duas damas de honor e três carneiros de estimação, e quatro caninos rafeiros e que às vezes espetam os dentes em ossos alheios,

Os filhos governados e dos netos que ainda não nasceram o futuro sorri-lhes como lamparinas de azeite na capela do monte,

Dizem que a caravana passa e os cães ladram, mas vai-se lá saber porquê e tal como às vezes andam porcos a voar, a caravana pode-se atolar no lodo do rio e os cães atacam, começam pelos tornozelos e terminam nas orelhas, diga-se que alguns deles nem as orelhas se lhes aproveitam, tal como as minhas, pontiagudas e a caminharem para a esplanada do silêncio onde poisa uma tulipa encardida e solitária,

Não liguem porque já tenho a fama de maluco, conceituado e diplomado e com certificação de internamento, e antes de começarmos o grandioso e famosíssimo espetáculo alguma coisa tenho de escrever para entreter o afamado público enquanto a trapezista disfarça as varizes e os palhaços colocam um penico de madeira na cabeça,

A barcaça enferrujada aproxima-se do cais dilacerante e coberto de madeixas encarnadas, os umbigos fintam-se nas folhas de papel espalhadas pelo chão que alguns lambem desafogadamente e brilhantemente e tudo que termine em ente, clemência senhor grita o público encerado pelos candeeiros convexos dos pardais, e eu respondo prontamente que só se for clemente e que clemência não rima com ente, alguém diz que serve detergente, claro que sim, e gente, e mente, e dormente…, eu sei, eu sei, podia ser ausente, e quero lá saber se El Rei está ou não presente,

Finalmente a trapezista sem varizes e os palhaços com rolhas de cortiça nos ouvidos para não distinguirem os berros dos aplausos, EL Rei surge sossegadamente suspenso numa das mamas da trapezista, e alguém não identificado do público borbulha na noite, O cabrão consegui, o cabrão conseguiu…

A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante e uma finíssima manta de neblina deita-se sobre a invisível cobertura do circo, o soalho pula pelas frestas das pouquíssimas moedas atiradas para o púbis da trapezista, e a trapezista desiste de sorrir; adormece profundamente nos braços de EL Rei todo-poderoso e senhor benfeitor do burgo.

A ilha transpira e dilata-se nas sobrancelhas do equino que mastiga pastinha elástica, uma buzina acorda da noite e um homem de barbas pelos joelhos cospe fogo e engole garrafões de azeite, e sua majestade ajoelha-se e pede perdão aos cidadãos do burgo encalhado no oceano de pedras e calhaus e de carqueja dormente e com reumatismo.

 

(este texto é de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência e especulação)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:16

A princesa menina

Que desce a calçada

Perde-se na rima

E arrima uma pedrada,

 

Parte a cabeça ao menino

E o vidro da janela

Ai menina ai menina sem destino

Ai menina donzela,

 

E veio o vento

E nas sandálias cresceram-lhe girassóis

Nos lábios acorda-se-lhe o encanto,

 

Ai menina da Vila Alice

Que procura nos lençóis

As memórias da meninice.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:33

O erguer-se na manhã, olhar-se no espelho e o medo ao cadáver suspenso nas lágrimas do guarda-fato,

Em corrida para a casa de banho e esconder-se na banheira, prepara o banho para desinfetar a pele das teias de aranha da noite, a água escorre lentamente contra os azulejos, o estômago em roncos de desperdício à espera do pequeno-almoço, e com sorte hoje pequeno-almoço, e falando de sorte recorda-se-lhe a infância quando se escondia no capim encharcado da tarde, olhava o céu e pedia um desejo,

- Quero voar,

E nunca voou, dei com ele esquecido sobre o guarda-fato e embrulhado em pedaços de lençol envelhecido no linho do tempo, anos, anos e anos e que eu saiba os voos dele resumem-se a idas à casa de banho, um líquido escuro subtrai-se-lhe da boca e ancora no silêncio da sanita, puxa o autoclismo e as nuvens entram-lhe pela janela, couves do quintal na porta de entrada, pessegueiros esganiçados na espera e os pássaros nãos os querem comer, as pedras atiradas aos cornos das cabras, e o farrusco que se extingue de osso na boca,

- Duzentos e seis ossos alinhados numa rua de luanda, contava-me ele,

O banho que finge alimentar-se das teias de aranha e estas continuam agarradas ao corpo como se fossem sanguessugas, os dentes calibrados na máquina de costura, a velhinha Singer com um pano de cetim preso na boca, duas voltas circunflexas na eira e o osso desparecia na sombra do farrusco, abria a porta e as couves tombadas na fome da sanzala,

- Olhava o mar e agarrava-me de braços acorrentados no pescoço da minha mãe, e gritava,

E ninguém o ouvia, nem barcos, nem ondas, nem o Mussulo, nem a estátua da Maria da Fonte, os aviões escapuliam-se pelas folhas das mangueiras como gaivotas envenenadas pela solidão dos dias, e a tarde descia no cacimbo dos mabecos,

- Deitava-me no chão fino da terra e amêndoas de chocolate cobriam-me os braços, as formigas vinham em meu socorro, e a saliva prendia-se-me na areia da rua,

A fome engelha-lhe as mãos e os braços e os olhos, as côdeas de pão minguam junto ao rio e os socalcos nas vibrações inconstantes do cheiro a diesel de barcos de recreio e comboios a vapor, a água evapora-se nos seios de vinhedos e quando chega ao púbis da vindima o mosto de girassol entranha-se no xisto embaciado da noite, uma luz acende-se na capela encalhada na montanha, um terço sorri à passagem de uma trovoada, e o esforço do ano árduo de trabalho dilatado nas cómodas apodrecidas do capitão marinheiro sem barco, deitado na banheira na esperança que do musseque venha até ele um papagaio de papel,

- Nem um cacho para amostra,

Durante a noite corre lentamente o lençol das horas, ergue a cabeça no sentido da janela, e repentinamente e em corridas cansadas faz-se à pista, desliza sobre o guarda-fato e pensando que a janela está aberta estatela-se contra os vidros espessos de garrafa que apodrece no vidão, o vinho derrama-se sobre a cama e no soalho espreita uma lagartixa ensonada, o crocodilo em madeira que trouxe de angola em guarda no hall de entrada, e o mar começa a distinguir-se no prato de sopa abandonado na mesinha-de-cabeceira, e ao longe um petroleiro acena-lhe e diz-lhe,

- Chegamos a lisboa,

A ponte amarra-se no candeeiro que saltita de rua em rua, o machimbombo desgovernado sobe as escadas até ao sótão onde deitado se distingue o musseque em coberturas de zinco, e o sol come-os em fatias de pão e alicerces de mandioca, os charcos de água incham e o petroleiro camuflado nas árvores do jardim engasga-se nos pêssegos e no machimbombo; vem a noite e acendem-se as luzes da fome.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:55

Em sua mão de seda escarlate

Poisa a gaivota atrevida

Mistura-se o céu com chocolate

E esconde-se o mar com vida,

 

Brincam peixes na calçada

Descem a rua sem sentido

Corre a nuvem na alvorada

Até ao rio esquecido,

 

É triste ser mendigo

E vaguear junto às arvores esfomeadas,

É triste não ter porto de abrigo

 

Um cais para atracar,

Em suas mãos cansadas

Nascem pétalas que olham o mar.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 13:16

Este é o último poema da minha vida

As finíssimas palavras em espera

Sobre a copa das árvores

Odeio-te diz-me o poema

E eu fico feliz ao perceber

Que o poema deixará de me pertencer,

 

As palavras morrem dentro de mim

Como as gaivotas quando as nuvens emergem na água

E um soslaio de energia mecânica adormece

Os êmbolos da tarde,

 

O papel emagrece e em sombras

Absorve as palavras que me odeiam…

 

Não sei se hoje é o meu último dia de vida

Mas tenho a certeza que este é o meu último poema,

Todos os outros são meus e pertencem-me…

Mas este deixará de ter vida

De ser meu

Este poema é um fantasma

O esqueleto que dentro de mim habita

E desfalece na claridade da manhã,

 

A janela da biblioteca encosta-se nos livros doentes

E cansados da minha presença…

E um finíssimos sorriso de pássaros

Plantam-se no meu quintal,

 

O poema funde-se no cansaço dos dias

E renasce na alvorada em cinzas

O meu corpo e o poema beijam-se…

E da janela olho um barco cansado que se afunda,

 

O mar engole-o

E mais tarde quando vem a noite

Eu e o poema à procura de abrigo

No fundo do mar…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:53

O chefe da estação

Bêbado da alvorada

De bandeira na mão

Cambaleando na calçada,

 

Os carris entram-lhe nos olhos minguados

E do rio as algas suspensas nos braços

O pinhão em socalcos encalhados

Dos vinhedos em cansaços,

 

O chefe da estação

No desespero de comboios engasgados

E o pôr-do-sol deita-se-lhe na mão,

 

O rio engole o chefe da estação

Em silêncios de dias amargurados

No silêncio do verão…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:28

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