Diário de bordo,
A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante, trapezistas, malabaristas, palhaços, e de tudo o mais, tudo a que estamos habituados a assistir nos dias tranquilos da ilha, e feras indomáveis com pelo de caracol penteado de adamastor quando o vento incorre pela montanha e desagua no número treze da avenida principal, e sua excelência EL Rei passeia-se no seu majestoso equídeo de pele cinzenta e dentes de marfim, e fazendo uma pequeníssima interrupção para explicar que pelo e pêlo são a mesma treta e portanto não se assustem com os erros de ortografia, El Rei passeia-se pelo burgo na companhia de duas damas de honor e três carneiros de estimação, e quatro caninos rafeiros e que às vezes espetam os dentes em ossos alheios,
Os filhos governados e dos netos que ainda não nasceram o futuro sorri-lhes como lamparinas de azeite na capela do monte,
Dizem que a caravana passa e os cães ladram, mas vai-se lá saber porquê e tal como às vezes andam porcos a voar, a caravana pode-se atolar no lodo do rio e os cães atacam, começam pelos tornozelos e terminam nas orelhas, diga-se que alguns deles nem as orelhas se lhes aproveitam, tal como as minhas, pontiagudas e a caminharem para a esplanada do silêncio onde poisa uma tulipa encardida e solitária,
Não liguem porque já tenho a fama de maluco, conceituado e diplomado e com certificação de internamento, e antes de começarmos o grandioso e famosíssimo espetáculo alguma coisa tenho de escrever para entreter o afamado público enquanto a trapezista disfarça as varizes e os palhaços colocam um penico de madeira na cabeça,
A barcaça enferrujada aproxima-se do cais dilacerante e coberto de madeixas encarnadas, os umbigos fintam-se nas folhas de papel espalhadas pelo chão que alguns lambem desafogadamente e brilhantemente e tudo que termine em ente, clemência senhor grita o público encerado pelos candeeiros convexos dos pardais, e eu respondo prontamente que só se for clemente e que clemência não rima com ente, alguém diz que serve detergente, claro que sim, e gente, e mente, e dormente…, eu sei, eu sei, podia ser ausente, e quero lá saber se El Rei está ou não presente,
Finalmente a trapezista sem varizes e os palhaços com rolhas de cortiça nos ouvidos para não distinguirem os berros dos aplausos, EL Rei surge sossegadamente suspenso numa das mamas da trapezista, e alguém não identificado do público borbulha na noite, O cabrão consegui, o cabrão conseguiu…
A carcaça enferrujada a aproximar-se dos plátanos e de boca aberta de espanto cintila na sombra das roulottes do circo ambulante e uma finíssima manta de neblina deita-se sobre a invisível cobertura do circo, o soalho pula pelas frestas das pouquíssimas moedas atiradas para o púbis da trapezista, e a trapezista desiste de sorrir; adormece profundamente nos braços de EL Rei todo-poderoso e senhor benfeitor do burgo.
A ilha transpira e dilata-se nas sobrancelhas do equino que mastiga pastinha elástica, uma buzina acorda da noite e um homem de barbas pelos joelhos cospe fogo e engole garrafões de azeite, e sua majestade ajoelha-se e pede perdão aos cidadãos do burgo encalhado no oceano de pedras e calhaus e de carqueja dormente e com reumatismo.
(este texto é de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência e especulação)