O senhor abade despe as calças e pausadamente pendura-as no cabide metálico do guarda-fato, a irmã Rosário olha-o e em rezas traiçoeiras engasga-se quando da janela vê uma gaivota que bate com o bico e em altos berros O mundo vai acabar!,
Depois de efetuado o sorteio calhou ao senhor abade dormir no chão e à irmã Rosário, que devido ao elevado estado de decomposição dos pesadíssimos anos, dormiria na cama enfeitada com canapés e arroz de feijão, o cheiro que da cozinha comunitária chegava ao quarto, o senhor abade benze-se e de joelhos Meu deus, dai-me saúde e forças para continuar a minha caminhada, e a prece felizmente concretizou-se, deus deu forças ao senhor abade para continuar a sua caminhada, e ao contrário dos agoiros da gaivota à janela e que a irmã Rosário foi testemunha, o mundo não acabou,
Isto é, o mundo termina para os que morrem,
A irmã Rosário para o sacerdote que tinha acabado de colocar as duas mãos sobre o peito a anotar na caligrafia da noite a cadência do bater do coração, desde muito novo apaixonado por deus, e quando duas pessoas se apaixonam pela mesma pessoa começam os trabalhos, os olhares infindáveis à porta de entrada da farmácia, as saídas mensuráveis dos pés trôpegos na despedida da tasca, o subir e descer de uma janela na calada da noite, as perdizes escondidas debaixo das oliveiras quando os caçadores ainda ensonados passam e fingem que nãos as veem,
E deus que sempre esteve comigo vai ajudar-me!, as palavras interiores do vigário-mor Benjamim António, nascido e criado na Sertã, afoitado pelas pedradas lançadas às patas da malhada, a pobre e cansada ovelha que sofria de esquizofrenia, e que em cada esquina da rua acreditava ver autocarros com o número 307 e meninas a brincar com triciclos, e nas horas mortas do pasto, alimentava o tempo a espetar pregos nas oliveiras, Safada da ovelha, agachada nos cobertos a irmã Rosário com o rabinho entrelaçado na sombra da parede,
E quando o senhor abade termina a contagem do batimento cardíaco já a irmã Rosário ressonava parecendo mais um sino de igreja a vomitar horas do que uma devota de deus, escreve no caderninho Cento e vinte pulsações por minuto, fecha o caderninho em silêncio, poisa junto ao rodapé a esferográfica, e passados alguns minutos com os olhos fechados vê à sua frente a irmã Rosário que se passeava pelo quarto com um terço enrolado pela mão,
A irmã sente-se bem?, o abade em reza noturna para a irmã Rosário, e esta responde-lhe que sim Estou bem, irmão!, apenas perdi o sono com o debicar daquela estúpida gaivota no vidro da janela, o abade furioso responde-lhe que a gaivota pode ser um sinal de deus, a irmã Rosário suspende-se entre o candeeiro e a janela e responde-lhe, Irmão, acha que são horas de deus enviar alguém?, o abade retira as mãos do peito, vira-se contra a parede e responde à irmã rosário,
Todas as horas são boas para recebermos os sinais de deus!, às vezes nós é que andamos distraídos…
(este texto é de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência e especulação)