Quando o corpo se derrete e do líquido pegajoso os cubinhos de gelo do fim de tarde, as árvores balançam-se sobre os cortinados de luz, passeiam-se pessoas em passo apressado, dos corpos acordam os cheiros da transpiração, uma menina sorri para as folhas de camélias poisadas sobre a mesa de granito, e sentada olha o rio, adormecem as nuvens junto aos parapeitos das janelas da noite, a menina ainda se prende nos olhos das camélias, e do balançar das árvores o grito da saudade,
O meu primeiro amor, os barcos, o mar, o capim, os aviões, as mangueiras, os papagaios de papel e o avô Domingos, o meu primeiro amor que se escondia entre as velhinhas carteiras da escola e engasgadas de caruncho, e a ardósia da quarta classe, ou da terceira, ou talvez da primeira classe, E se foi no liceu?, há tanto tempo que me esqueci, mas os olhos pareciam estrelas quando da noite deita a lua a cabecinha sobre a almofada dos relógios de pulso em movimento, os olhos lindos, e nas mãos os risquinhos desajeitados da caligrafia, não me é possível classificar a cor do cabelo porque sou daltónico, mas o cabelo parecia uma seara de trigo, escrevia bilhetinhos em pedacinhos de papel, E ainda hoje pensas que és escritor?, que neste momento não me é possível afirmar se ela os leu, mas o mais provável não os leu, Quem vai ler a porcaria que escreves?, esperava-a à saída da escola e senti o meu primeiro batimento cardíaco do amor, e eu pensava E o que será isto?, o coração acelerava-se e o meu rosto mudava de cor, e mais uma vez peço desculpa por ser daltónico, e quanto à cor do rosto, diz o povo Ficou vermelho como um pimento!, e talvez o meu rosto vermelho como um pimento, e passavas por mim sem me dizer, Olá, é porque os pedacinhos de papel não lhe chegaram às mãos, ou ignorou-os, ou nem os leu,
Sobem às árvores as lágrimas da tarde, os fios de seda da maré entram pela janela e a menina esquecida na mesa em granito nem se apercebe, o guarda-fato escancarado, remexido, falta a roupa dela, e percebo que a mala não está, e um bilhete sobre a cama ainda desfeita como a tinham deixado pela manhã,
Meu querido,
Decidi ir-me embora. Por muito que te ame não consigo viver ao teu lado, quero ajudar-te e não sei como, e percebo meu amor, percebo que te irritas comigo quando te segredo durante a noite que precisas de fazer alguma coisa na tu vida, e tu, tu dizes-me Que queres que eu faça mais?, e eu, meu amor, eu sei o quanto será difícil viver quase miserável, e acredita, meu amor, acredita que não é pelo facto de seres miserável que me vou embora, vou simplesmente porque vejo-te sofrer e não sei o que fazer por ti, e juro meu amor, juro que rezo tanto por ti, mas parece que deus não nos ouve, olha meu amor, não chores, tu vais encontrar a sorte que mereces, mas por favor, meu amor, não me peças para assistir à tua decadência, deixaste de tomar banho, o cabelo cresce que até parece um silvado, e essa barba, meu amor, essa barba que já nem te lembras da última vez que a cortaste, vou amar-te sempre, meu querido,
Beijos grandes de mim para ti,
Possivelmente os pedacinhos de papel perderam-se pelo recreio da escola, o sempre coração com duas setinhas e a mesma aparvalhada de sempre, Amo-te, ou as iniciais, ou nos bancos de jardim, e nas árvores, e eu já na altura percebia que iria ser um tipo sem sorte, miserável, e sem interesse nenhum, sentava-me na esquina da parede, e trocava os jogos de futebol pelos pensamentos onde brincavam barcos no capim da tarde, e as mangueiras dançavam sobre o pôr-do-sol em Luanda, e às vezes olhava a menina de cabelos castanhos e corpo esguio, mas possivelmente ela nunca reparou na minha presença, apenas quando eu pegava na bola desajeitadamente e partia um vidro da escola, e toda a gente, mesmo tu, troçavam de mim, mas a culpa não é tua, meu amor, eu é que fui sempre assim desajeitado, e sem interesse, e perdia-me e ainda me perco, em horas a pensar como se o pensar alimentasse alguém, e claro que não, ninguém vive de pensamentos, mas o que queres tu, sou assim desde criança,
As janelas da noite, a menina ainda se prende nos olhos das camélias, e do balançar das árvores o grito da saudade, as minhas mãos tão pequeninas quando se abraçavam ao pescoço da minha mãe, o medo do mar, e as gaivotas à minha volta em brincadeiras de meninos, e deixei de ver os meninos…