Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

21
Ago 11

I Ato (sentado na sanita, “Em busca do Tempo Perdido, À Sombra das Raparigas em Flor, Marcel Proust”, “ Albertina ouvia com apaixonada atenção esses pormenores de toilette, as imagens de luxo que Ester nos descrevia.”

 

E esqueço-me que estou sentado na retrete e de cigarro na mão, e nunca te disse, meu amor, mas inspiro-me sentado na sanita a fixar os azulejos com os olhos e a puxar as palavras do livro que poisa nos meus joelhos, oiço a tua finíssima voz que se agarra ao espelho da casa de banho, e quando passo em frente a ele, não consigo, meu amor, fecho os olhos e não me quero ver, estou magro, as costelas impressas no peito e a radiografia aos pulmões tudo bem, Nem parece fumador!, diz-me o doutor, outras vezes inspiro-me sentado no bidé e olho a límpida água do fundo da sanita, e acredita, meu amor, vejo o mar,

 

Chove torrencialmente, o céu ilumina-se e agora já não é a tua voz que oiço, talvez seja deus a ralhar comigo, sim, meu amor, como quando eu em criança serrava a vassoura à minha mãe para o eixo da frente do carro de rolamentos, e ela, Que fizeste, Francisco?, e às vezes o Francisco enrolado no cinto, e escondia-me debaixo da cama e fingia-me de morto, E gritava, Mãe, estou morto, e do meu corpo desengonçado cresciam as algas da primavera, da rua ouvia a voz de uma vizinha O Francisco fez asneiras, e os pregos nas tomadas, e os novelos de linha que lhe roubava da renda, e a renda suspensa dentro da cesta, e o papagaio sobre o Bairro do Hospital,

 

Mas chove tanto, meu amor, e deus, deus continua zangado comigo, berra, berra, e berra,

 

O cigarro apaga-se, fecho o livro, poiso-o sobre a máquina de lavar a roupa, limpo o rabinho, puxo as cuecas, pego numa grua e iço as calças do fundo dos tornozelos que mais parecem fios de arame, e num clique a água que se evapora do autoclismo, coisas modernas, meu amor, coisas modernas, porque quando andava na escola em frente ao jardim a casa de banho não funcionava, lá dentro cresciam silvas, Sabes o que são silvas, meu amor?, e os piquinhos prendiam-se à tenra carne esbranquiçada das nádegas, e tínhamos que defecar, de calças na mão, na vinha ao lado da escola,

 

E o vento entrava em nós,

 

II Ato (enquanto espero o telefonema dela, “Vigílias, AL Berto”,

 

“Encomenda Postal

 

Destino-te a tarefa de me sepultares

No segredo mineral da noite

Com um lápis e uma máquina fotográfica

 

Depois

”, de A noite Progride Puxada à Sirga: Sete poemas do Regresso de Lázaro, 1985)

 

Meu amor, deus cessou de ralhar comigo, ainda chove, e finalmente oiço a tua voz melódica que me faz esquecer esta caixa de sapatos onde me encontro, o júlio, Lembras-te do júlio, meu amor?, o meu amigo de infância que comigo fazia máquinas de cinema, papagaios de papel e barcos com motores de carros, Sim, meu amor, esse mesmo, sempre com um sorriso nos lábios, ontem lembrei-me dele a correr junto à seara de trigo,

 

E esta caixa de sapatos começa a inchar, a noite cai sobre mim, calca-me até eu ficar pequenino, muito pequenino, e vejo-me de mão dada com a minha mãe e a minha avó nas ruas de Luanda, e quando me perguntavam o que queria ser quando fosse grande O que queres ser quando fores grande, menino?, eu simplesmente respondia, NADA, não quero ser nada, e realizei o meu sonho, não sou nada, e se fosse hoje, hoje, meu amor, hoje gostava de ser gaivota e voar sobre o mar de Luanda,

 

E quando poisasse no chão húmido da madrugada acordava a manhã, e sacudia as nuvens do céu,

 

III Ato (a fumar um cigarro na varanda, “A ordem Natural das coisas”, António Lobo Antunes”, “Quando, depois de me prenderem, me meterem pela primeira vez na ambulância e perguntei onde íamos, responderam-me Isto é a viagem à China, rapaz,…”)

 

Esta maldita caixa de sapatos, meu amor, esta mísera caixinha minúscula onde me escondo quando passam por mim, não os olho, e finjo ser feliz, e sou feliz com o teu sorriso, e sou feliz com a tua voz e sou feliz com o teu corpo quando sais do banho e nas pequeníssimas gotinhas de água sorrisos de jacintos na tua pele,

 

Depois vem o vento e leva-nos, o mar, meu amor, o mar quando entra dentro de ti e eu com as minhas mãos escrevo nas tuas páginas de silêncio de noite, ainda chove e finalmente deus deixou definitivamente de ralhar comigo, e os teus desejos que balançam sobre as ondas do luar, pequeníssimos gemidos saltitam de dentro de ti, e o sol, do outro lado do planeta, sorri para nós,

 

E a noite se apaga nos teus olhos, deixo de ver o teu corpo, da janela chega até mim o teu perfume, e junto ao cortinado um milímetro quadrado de nada entra em nós, agarro-te e beijo-te, e sei que a noite se despede na tempestade, e deixei de ouvir a voz de deus…

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:52

“Quando a mãe do poeta perguntava a si própria onde teria sido concebido o poeta, apenas três possibilidades entravam em linha de conta: uma noite no banco de uma praça ajardinada, uma tarde no apartamento de um amigo do pai do poeta, ou uma manhã num recanto romântico dos arredores de Praga.”,

“A vida não é aqui”, título de um livro de Milan Kundera, 1ª edição: janeiro de 1990, página 11,

 

E em 1990 eu acreditava que a vida não fosse aqui, coisas da juventude, sonhos que com o passar do tempo se transformam em pedacinhos de nada, mas hoje, hoje tenho a certeza que a vida é aqui, e que para alguns é boa demais, e para outros, madrasta, para uns é boa de mais porque coabitam com o oportunismo, umas vezes estão na margem esquerda do rio, e outras, outras estão na margem direita do rio,

 

Nada tenho contra os que atravessam os rios, pois foi precisamente para resolver esse problema que desde sempre se utilizaram barcos, pontes ou a nado, e o oportunismo tem limites, e em Alijó mete nojo, e então nos últimos vinte anos veem-se coisas que escrevendo ninguém acredita, lugares criados propositadamente para esta ou aquela pessoa, algumas delas do mais incompetente que existe, o doutorado em economia que vê passar à frente o licenciado, apenas porque um era genro de um alto dirigente do poder, e mais, e mais, e não interessa continuar, e não lhes bastando terem-se apoderado do Triângulo das Bermudas, querem agora assaltar as obras da Barragem do Tua, mas deixamos Alijó e voltamos ao que interessa, à juventude, aos sonhos, à poesia, a Milan Kundera, e felizmente que a prática de enviar os renegados para a Sibéria terminou,

 

E a vida é realmente aqui, injusta, e para aqueles que não se vergam, não dizem sim apenas porque alguém quer que ele diga sim, porque se eu tenho um copo na mão e mesmo que o meu melhor amigo me diga para eu dizer que é um cinzeiro, eu, eu simplesmente lhe respondo, Desculpe mas é um copo,

 

O problema de Alijó e de A vida não ser aqui é extensivo ao resto deste retângulo, o oportunismo, os políticos deixaram de desempenhar as funções para que foram eleitos, isto é, defender os interesses do povo, para à custa do povo resolverem os seus problemas familiares e pessoais, e mete o filho, e mete a filha, e mete a sobrinha, e mete a cunhada e mete o namorado da filha e mete a amiga do namorado da filha e mete o vizinho que andou a passear a bandeira e a receber cheques para andar na campanha eleitoral, vergonha, vergonha, e vergonha…

 

Kundera escreve lindamente, e sou apaixonado por ele, e aconselho vivamente a leitura deste livro, mas não posso concordar com ele quando coloca como título “A vida não é aqui”, claro que a vida é aqui e para alguns tem sido um sonho, ouro sobre azul…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 17:35

Esconde-se de mim o sono

E penso

E desejo

Talvez nos teus braços adormecesse

Talvez

Da noite acordem acácias em flor

Cresçam gaivotas no teu sorriso

Talvez os pingos da chuva poisem nos teus olhos…

 

E no entanto

Agora e neste momento

A ausência do teu abraço

E ver-te sentada debaixo de uma árvore

E brincam pássaros

E passeiam-se barcos nas traseiras da esplanada

Olhas o mar

Chamas o mar

E com o mar entro na tua vida…

Alicerço-me nos teus lábios

E deito-me na tua mão

E entra em mim o sono,

 

Fico quietinho como se fosse uma acácia

E da minha flor sorrisos

E das minhas pétalas soltas no vento

Acorda um menino que olha o mar,

 

Esconde-se de mim o sono

E penso

E desejo

Talvez nos teus braços adormecesse…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:18

Quando o ontem

Se desfaz em pedacinhos

E pela manhã

O hoje renasce do papel retalhado

 

Quando o ontem

Em ondas de espuma

Contra as rochas da impaciência

E amanhã procuro nas cinzas

 

Os pedacinhos de hoje

A brancura das nuvens

Sobre os plátanos suspensos nos meus olhos…

Quando o ontem se despediu do meu corpo

 

E hoje encarna na sombra o amanhã

Sem cansaços

Com a força dos teus olhos

Dos dias que finjo estar feliz…

 

E desejo os teus braços

Os teus lábios em delírio e fúria de mar

Quando o ontem se afundou na tua cama

E o hoje acorda na tua boca

 

E vejo o sorriso mais lindo

O céu brilhante que me entra pela janela

Quando o ontem em pedacinhos

Se despediu dos braços dela.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:35

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