Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

24
Ago 11

E ainda não tinhas nascido, e o céu de Luanda tão azul e tão límpido, e as nuvens pareciam pedacinhos de algodão, e ainda não tinhas nascido, e o mar calmo do Mussulo, os coqueiros, as mangueiras e bananeiras, e ainda não tinhas nascido, e a minha primeira entrada numa tenda de circo, e não, não foram os palhaços que me alegraram, e não, não foram os trapezistas que me contentaram, e não, não foram os animais que me fascinaram, e ainda não tinhas nascido, e foram a luzes, sim, precisamente as luzes que me despertaram interesse,

 

Tinha, e tenho, deixei de ter, não sei, medo da noite, não por ser escuro, mas porque no teto do meu quarto não tem, e ainda não tinhas nascido, e nunca teve estrelas, e pergunto-te Imaginas-te num quarto sem estrelas?, claro que não dizes-me tu, e ainda não tinhas nascido e perdia-me nas tarde a olhar os aviões, e os pássaros, e o infinito, e ainda não tinhas nascido, tinha medo da noite, e não sei porquê mas a noite parecia-me maior que o dia,

 

E ainda não tinhas nascido, e o céu de Luanda tão azul e tão límpido, e as nuvens pareciam pedacinhos de algodão, a ainda não tinhas nascido quando vi pela primeira vez um barco, fiquei incrédulo Não vai ao fundo…, e é tão grande!, e o meu pai, e ainda não tinhas nascido, todos os domingos me levava a ver os barcos, os treinos de hóquei nos Coqueiros, e ainda não tinhas nascido, e olhava a estátua da Maria da Fonte, e depois do circo, ainda não tinhas nascido, sentava-me na esplanada do Baleizão, olhava o céu e tinha estrelas, e comia um gelado, e ainda não tinhas nascido, regressava a casa, e olhava o teto, e não estrelas e não barcos e não estátua da Maria da Fonte, e ainda não tinhas nascido,

 

Descobri que eu sou apenas um sonho, e ainda não tinhas nascido, e deixaram a criança em Luanda e trouxeram outra coisa qualquer, e ainda não tinhas nascido, e percebo agora que eu não sou e nunca fui a criança que, e ainda não tinhas nascido, olhava o céu azul e límpido de Luanda, os barcos, o circo, a estátua da Maria da Fonte, o Mussulo, o estádio dos coqueiros,

 

E ainda não tinhas nascido, e possivelmente na confusão trouxeram outro miúdo que não eu, e ainda não tinhas nascido, quando pela primeira vez vi um papagaio de papel a brincar no céu azul e límpido de Luanda,

 

E ainda não tinhas nascido,

 

As gotinhas ténues da chuva poisavam na minha mão e no meu quintal voava um triciclo com acento de madeira, e as pombas corriam, e ainda não tinhas nascido, eu adormeci a olhar as nuvens de algodão.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:40

Mafioso,

Tão estúpido

E ignorante

Que ele é,

E passa por mir

E espuma da boca,

Parece um cão raivoso,

 

Se ele me pudesse comer

E que me comia,

 

Vaidoso,

Tão estúpido

E ignorante

Que ele é,

E passa por mim

E espuma da boca,

Parece um cão raivoso,

 

Se ele me pudesse foder

E que me fodia,

 

Odioso,

Tão estúpido

E ignorante

Que ele é,

E passa por mim

E espuma da boca,

Parece um cão raivoso,

 

As palavras, senhor,

As palavras são a arma do pobre…

Nunca vi um burro ser doutor

Mas já assisti a um pobre ser nobre…

 

Se ele me pudesse comer

E que me comia,

Se ele me pudesse foder

E que me fodia,

 

E entre o comer

E fodia

Está o foder

E comia,

 

Está a alegria…

A alegria de viver

Viver a alegria da liberdade

Voar e não parecer

Ser

Uma gaivota aprisionada…

As palavras, senhor,

Eles têm medo das palavras,

 

E o Mafioso

E o Vaidoso

E o Odioso,

Tão estúpido

E ignorante

Que ele é,

 

Sentado no café!

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:57

Era quase meia-noite, o velho Armindo às voltas com a manivela da mudança dos dias, o sábado de 22 de janeiro de 1966 quase a despedir-se e o domingo em espera entre a Mutamba e a ilha do Mussulo, o velho Armindo em esforços braçais e gritos que cuspia da garganta contra a pesadíssima roldana, a manivela em fios de navalha terminava o ciclo de vinte e quatro horas, era quase meia-noite, sábado, e era verão, e do mar vinha o suor das gaivotas, uma mulher na maternidade enrolava-se na madrugada e em pequeníssimos gemidos que se ouviam no corredor disparava vogais contra as janelas da enfermaria, e uma voz Puxe, puxe, e no corredor um homem às curvas e fitando as ondas do Mussulo engolia os cigarros sem os acender, nervoso, e a parteira Puxe, puxe, e o homem Menino ou menina?, o velho Armindo muda o dia e o domingo aos poucos a erguer-se como um girassol, sorrindo, sem nuvens, e era verão, e nascia o sol, o homem impaciente, o homem pensava Que se passa que eles não dizem nada, e às 7:30 horas da manhã de mãos ensanguentadas, o velho doutor Camacho, médico e amigo do homem, rompe a porta, abraça-o e segreda-lhe Parabéns, Fernando, é um menino e estão bem, e estão bem a mulher e o filho, e os berros do rapaz que não se cala, e já o velho Armindo se pendurava na manivela da manhã quando o homem olhou pela primeira vez o filho, espantou-se por ele ser tão pequeno Ele é tão pequenino, doutor, e o doutor Camacho responde-lhe que é normal e que são todos assim,

 

- Todos não, todos não, às voltas o velho Armindo com a manivela para o homem que saía da maternidade e se dirigia para casa, tomar um banho, comer qualquer coisa, e dizer aos sogros que a filha estava bem, que era um rapaz, que era muito pequenino, e berrava muito, e o doutor Camacho São todos assim, não te preocupes, são todos assim,

 

E o velho Armindo diz que não Não, não são todos assim,

 

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:59

Há quem se sinta incomodado

Passa por mim e vira a cara para o lado

E pudera

Uns porque têm o filho empregado

E outros tendo o filho desempregado

Estão em lista de espera,

 

Há quem se sinta incomodado

Passa por mim e vira a cara para o lado

E pudera

Uns porque temem o fim do candado

E outros num desespero desesperado

Esperam o começo da Primavera.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 12:37

Porque estou vivo

Se me dou conta que não sirvo para nada,

Não sei fazer nada,

Dizem que não sei fazer nada,

Porque estou vivo

E me obrigam a todas as humilhações,

Será castigo?

Porque estou vivo,

E me proíbem de tudo

Me proíbem de sonhar

Me proíbem de trabalhar

Porque estou vivo?

 

Será castigo?

Estou morto

E finjo viver

E finjo sonhar,

Porque estou vivo

Se não me deixam caminhar

E me proíbem de voar

E me proíbem de sonhar…

 

Deixem de me humilhar

E se me querem matar

Matem-me e ficarei em paz

E eternamente agradecido vou ficar,

 

Porque estou vivo

E me obrigam a todas as humilhações,

Tratarem-me como um cão

Ou um louco travestido e com alucinações,

Porque me obrigam a viver

Esta vida sem sentido,

Sempre esta fogueira no peito a arder

Sempre estas nuvens e o sol escondido…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 11:34

Roubaram-me os sonhos

Tiraram-me o sorriso

Roubaram-me o mar

As gaivotas

E os barcos sem juízo

Roubaram-me as árvores

E os pássaros a brincar

Mas esqueceram-se de me roubar

 

A vontade de lutar…

Roubaram-me os sonhos

Tiraram-me o sorriso

Mas ainda tenho palavras ao acordar!

publicado por Francisco Luís Fontinha às 10:23

Anoitecias nos meus braços

Era eu criança

E sabia que vinhas buscar-me – Monstro das três cabeças

O silício da noite

E nos meus tornozelos enrolavas um cordel

E puxavas e puxavas e puxavas

Era eu criança

E a tua sombra pesava e pesava e pesava

Anoitecias nos meus braços

E eu achava-te graça

Sorria

E nunca tive medo dos teus olhos

 

Às vezes chovia

Anoitecias nos meus braços

E puxavas e puxavas e puxavas

O silêncio do dia

 

Às vezes trazias-me o cacimbo do entardecer

Anoitecias nos meus braços

E puxavas e puxavas e puxavas

O dia a morrer

 

Anoitecias nos meus braços

Era eu criança

E sabia que vinhas buscar-me – Monstro das três cabeças

O silício da noite

E puxavas e puxavas e puxavas

Os meus braços

E puxavas e puxavas e puxavas

Era eu criança

Criança em cansaços

E noitecias em mim

E chovia e chovia e chovia

E acordava o dia

 

E brincava no jardim

Anoitecias nos meus braços

Mostro de cetim

Era eu criança à sombra dos palhaços

 

Deitado no capim

Anoitecias nos meus braços

Era eu criança

E puxavas e puxavas e puxavas

O dia que acordava

Era eu criança

E adormecias nos meus braços

E eu te beijava e beijava e beijava…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:05

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