Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

30
Ago 11

Sabes, minha querida, ontem sonhei que nas paisagens silabadas do douro cresciam sorrisos e malmequeres, e em cada socalco um menino brincava, caía a chuva miudinha no outono amarrotado, e minha querida, o outono ainda nem acordou, e o outono ainda embrulhado nos lençóis dos equinócios, às voltas e às voltas, e a roda não se cansa de girar, e no doirado do céu as lágrimas de videiras solitárias abraçadas ao sol docemente adormecido,

 

O rio perde-se nas curvas e contracurvas das encostas,

 

E um rabelo abraçado à manhã que acabava de acordar, e dentro do meu sonho, e dentro do meu sonho as paisagens silabadas do douro, e eu, e eu minha querida, eu estava lá, encostado à enxada que descansava sobre o xisto húmido da manhã, doía-me as costas, doía-me os braços, Se estou doente?, não, não minha querida, refiro-me ao sonho de ontem,

 

- E eu pergunto-me porque escrevo sobre o douro e as paisagens do douro, Porquê?, e eu pergunto-me porque escrevo sobre o rio douro, Porquê?, e respondo-me Não sei, não sei e não sei…

E se eu soubesse não me perguntava,

E não tenho saudades desta terra, nenhumas, e não tenho saudades desta terra, nenhumas, Tenho saudades de Angola, de Lisboa, do Tejo e dos cacilheiros,

E arrependo-me, e arrependo-me de quando cheguei a Lisboa em Setembro de 1971 não ter fugido aos meus pais e ficar a vaguear pelas ruas, e ficar a vaguear pelos quelhos, e ficar a vaguear pelo rio, e hoje, hoje possivelmente já se tinham esquecido de mim, possivelmente,

 

E voltando ao sonho, minha querida, voltando ao sonho a enxada termina o seu descanso e agarra-se-me às mãos enrugadas pela dor de subir e descer socalcos, pesa muito, e um líquido vermelho escorre-me das mãos, neste momento não consigo explicar-te porque o sonho foi ontem, mas tenho a certeza que o líquido que se derramava era salgado,

 

- Possivelmente, possivelmente hoje tinham-me esquecido, mas não esquecem, mas nunca esqueceram, e tudo tinha sido tão fácil se me tivesse perdido deles, e bastava aliviar a minha mãozinha durante a confusão, e hoje, hoje possivelmente já me tinham esquecido, e não esqueceram, e nunca me vão esquecer, ou talvez, se eu nem tivesse embarcado, que feliz eu era se tivesse ficado esquecido no Porto de Luanda, e olhava o céu, e olhava o mar,

 

Não sei, minha querida, talvez seja sangue, mas não importa, sangue, água, ácido sulfúrico, não importa, e as minhas mãos choram, têm lágrimas, gemem durante a noite, quando os sonhos entram em mim e me puxam para o infinito, e nas paisagens silabadas do douro cresciam sorrisos e malmequeres, e em cada socalco um menino brincava, caía a chuva miudinha no outono amarrotado…

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 21:48

E que os dias se escondem nas sombras dos ponteiros de um relógio, desce suavemente o cortinado da noite, e no palco da vida começa o espetáculo, um texto inventado, personagens inventadas, cenários fictícios, e a vida resume-se a uma estória inventada, a vida enrolada nas manhãs junto ao abismo, um pássaro sorri, e no espetáculo da vida continua a chover, há nuvens, e a tempestade alicerça-se junto aos espetadores, tristes, impávidos, ausentes, e começa a noite,

 

Um poema é disparado contra a assistência, e sobre o palco, sobre o palco três cadeiras e uma mesa coxa, e numa das cadeiras está sentado Milan Kundera, sereno, e olha a assistência de frente, como em toda a sua vida, olhos nos olhos,

 

Recorda os tempos da antiga Checoslováquia, nascido em Brno, em 1929, e recorda, e de olhos nos olhos para a assistência recorda, quando foi demitido de professor no Instituto de Altos Estudos Cinematográficos, viu os seus livros proibidos, e o seu nome banido da lista telefónica, e acabaram por lhe vedar o acesso ao trabalho, e em 1975 fixa residência em França,

 

Da assistência alguém interrompe Milan Kundera, e o encenador da vida pega no copo de água poisado na mesa, mastiga os lábios e molha-os, e o espetador pergunta-lhe Como é possível ter isso acontecido?, Milan Kundera poisa o copo sobre a mesa, finca as mãos e responde-lhe É assim o palco da vida, meu amigo, é assim o palco da vida!,

 

E que os dias se escondem nas sombras dos ponteiros de um relógio, desce suavemente o cortinado da noite, e no palco da vida começa o espetáculo, um texto inventado, personagens inventadas, cenários fictícios, e nada é real, os atores que se deitam sobre a seara de trigo junto ao mar, o texto é folheado por um aprendiz de feiticeiro, e todas as personagens, e todas as personagens são engolidas pelo cansaço da maré,

 

O público aplaude, o público quer mais,

 

E o encenador da vida com as lágrimas nos olhos vê o seu rosto no espelho pendurado na parede do camarim, e pergunta-me, e pergunta-se, Terá valido a pena?, e puxo de um cigarro, e acendo-o, e quando o poiso sobre o cinzeiro, respondo-lhe Amigo, tudo na vida vale a pena…

 

E a vida resume-se a uma estória inventada, a vida enrolada nas manhãs junto ao abismo, um pássaro sorri, e no espetáculo da vida continua a chover, há nuvens, e a tempestade alicerça-se junto aos espetadores, tristes, impávidos, ausentes, e começa a noite,

 

Apagam-se as luzes do teatro da vida e o encenador adormece.

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 18:57

Quando a árvore dos silêncios

Caminha sobre o mar

E em pétalas de sorriso

Voam as gaivotas até ao infinito,

 

E o vento as leva

E no vento se desfazem como pedacinhos de papel

Quando a árvore dos silêncios

Emagrece nas sombras da noite,

 

E uma mão afaga-me o rosto

Limpa-me as lágrimas de escuridão

E sinto que a árvore dos silêncios…

Corre e corre e corre sem parar,

 

Caminha sobre o mar!

publicado por Francisco Luís Fontinha às 16:48
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A eterna manhã adormecida

Entre as nuvens em demandada

A manhã que se espedaça na tarde perdida

Nos dias de nada,

 

A eterna manhã adormecida

E de um cansaço de braços

A flor encardida

Suspensa nos meus braços,

 

A eterna manhã adormecida

Deitada no perfume do mar

Esquecida

Em sonhos de sonhar…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 09:42

29 de Agosto de 2011,

Fim do dia,

 

Despede-se de mim o dia, procuro sobre a mesa-de-cabeceira as sobras do silêncio, e pequenas migalhas poisam sobre o naperon da velha Arminda, uma borboleta visita-me, olha-me e adormece na minha mão, termina o dia,

 

30 de Agosto de 2011,

Início do dia,

 

Começa a terça-feira, e lá fora oiço o mar que bate na janela do quarto, e oiço e oiço e oiço, e oiço as sombras engasgadas que aos poucos descem a parede e em direção ao pavimento desparecem, e nas fendas dos velhinhos tacos de madeira esconde-se a voz do locutor da rádio Até amanhã, se deus quiser!, e se deus não quiser, o amanhã não existe, e se eu não tenho amanhã concluo que é porque deus não quer,

 

Terça-feira, início do dia, e a anoite balança no pêndulo do relógio pendurado na parede da sala, e oiço-o, oiço-o de quinze em quinze minutos martelar os quartos de horas, as meias horas e as horas, e peco a paciência, e já nem ouvi-lo quanto mais olhar-lhe os anos esquecidos quando o trouxeram para casa,

 

O mar lentamente deixa de bater na janela do quarto, transfiro a borboleta da minha mão e que dorme carinhosamente e lentamente para o naperon da velha Arminda, desenho-lhe um sorriso sobre as asas, e espero que a manhã acorde,

 

Se acordar,

 

Se deus quiser que haja manhã,

 

A borboleta suspira, e eu apago a luz do candeeiro.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:23

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