Esconde-te, Esconde-te, gritava dentro da caixa de sapatos a prostituta loira para a prostituta morena, Esconde-te que ele vem aí!, e a neve cansava-se na noite de dezembro, os vidros das janelas tinham desistido de viver e o vento assobiava entre o corredor e o cubículo onde uma sanita poeirenta adormecia, o menino aquecia as mãos na torradeira e a porta de entrada apenas presa por um finíssimo cordel, escadas de acesso ao segundo andar, muito lixo, e móveis que escondiam os desejos de antepassados esquecidos no adro da igreja, as escadas rangiam com o frio, e numa divisão ampla separada por um cobertor, de um lado o colchão do menino, e do outro, do outro o colchão dos pais do menino, e os degraus de madeira deixaram de sorrir,
Ratos, ratos subiam e desciam as escadas da casa esquelética,
- E eu vinha à janela, e os carros pareciam fios de navalha entre a neve e o vento, e eu perguntava à minha mãe Porquê mãe, porque poisam pedacinhos algodão aqui?, e a minha mãe enquanto limpava as lágrimas explicava-me que não era algodão Não é algodão, meu filho, é neve, Neve?, e o que é neve, mãe?, e uma tarde inteira a subir e a descer degraus caquéticos,
E ninguém sabia,
Ratos, ratos que me olhavam do canto do cubículo, e de dentro da caixa de sapatos ouvia a voz Esconde-te que ele vem aí!, e eu olhava, e eu não sentia nem via ninguém, apenas neve, vento, e a ausência dos vidros na janela,
- Eu começava a chorar Porquê, mãe, porquê?, e a minha mãe fingia que sorria, e durante a noite ouvia-lhe as lágrimas caírem sobre o soalho,
Contava-me as estórias de Luanda para enganar o tempo, explicava-me que aqui não existiam machimbombos, porque aqui era camioneta da carreira, e que o inverno era um senhor muito velho que às vezes tinha tosse, que às vezes muito rabugento, e que às vezes vinha a neve, e eu não percebia a razão do peso enorme nos meus pés, e ao fim do dia, ao fim do dia adormecia, cansado das pesadíssimas botas,
E ninguém sabia,
E aqui não capim, e aqui não musseques, e aqui não mar,
- Porquê, mãe, porquê?, e a minha mãe dizia-me que se eu fechasse os olhos e imaginasse que estava em Luanda, debaixo das mangueiras, o frio fugia de mim, e eu, eu passava tardes inteiras de olhos fechados, e em Luanda eu debaixo das mangueiras a conversar com o triciclo e o chapelhudo,
E ela tinha razão, o frio não entrava em mim,
E ninguém sabia,
Eu não sabia que aqui nevava, e que o algodão que eu metia na boca, não era algodão, era neve,
Esconde-te, Esconde-te, gritava dentro da caixa de sapatos a prostituta loira para a prostituta morena, Esconde-te que ele vem aí!, e a neve cansava-se na noite de dezembro, os vidros das janelas tinham desistido de viver, e ele cambaleando subia as escadas para o segundo andar, e eu ouvia-lhe as tonturas, e eu ouvia-lhe o pedaço de madeira que transportava junto ao tornozelo, e o caixeiro-viajante sumia-se nas entranhas do frio de dezembro,
- Fechava os olhos, e imaginava que brincava no quintal em Luanda, e o frio não entrava em mim....
O caixeiro-viajante deitava-se e em contas de cabeça adormecia,
E o frio não entrava em mim.
(texto de ficção inspirado nos primeiros seis meses em Alijó)