Sentava-se sobre a geada da noite, e na sombra dos cigarros desenhava sorrisos junto ao peito, as mão encolhidas no bolso do sobretudo, e o meu pai adormecia num banco de jardim a sonhar com melros que na sua infância costumavam poisar no quintal,
Um pedacinho de sincelo regressava do rio e embrulhava-se nos seus setenta e três anos, cansado, velho, inconformado por ter deixado Angola, o melro olhava-o e ele em calções corria nos socalcos das tardes de outono, e quis o destino que ele nascesse num dia de vindima,
Sentava-se sobre a geada da noite, mergulhava os olhos no silêncio do jardim, cruzava os braços e resmungava com a sombra de um plátano Que porcaria de via a minha!, o sobretudo crescia nos dias que corriam para o rio, e ele balançava no seu interior, mergulhava na água e quando acordava estava deitado na praia em Luanda,
- Cresci rico, e agora, agora mendigo aqui e acolá,
Não pai, digo-lhe eu, a riqueza não está no dinheiro, a riqueza está dentro da nossa cabeça, e a maior riqueza é a inteligência e a cultura, ele olha-me e em abanos de braços diz-me que,
- Ninguém come inteligência e cultura,
Toca o telefone, atendo e a minha irmã em desesperos, António, o pai sentiu-se mal, Mal? Sim, António, está no hospital e vai ficar internado uns dias, entre mim e ela uma barreira de silêncio, cansaços de inverno, fogueiras na lareira de Carvalhais, e eu ainda ontem falei com ele Ainda ontem falei com ele,
- Em principio o doutor diz que precisa de descansar um pouco e receitou-lhe pastilhas para a saudade,
Saudade?, Sim, António, o problema do nosso pai é a saudade,
- Cresci rico, e agora, agora mendigo aqui e acolá,
Fazia Luanda Caxito, Caxito Luanda, a tua mãe grávida de ti, De mim, pai?, sim, de ti, meu filho, e os mosquitos entravam em nós, e tu, tu de vez em quando com enjoos dentro da barriga da tua mãe, chovia, o camião atolava-se até aos joelhos, os dentes agarrados ao capim e os embondeiros de braços abertos para os gritos de revolta dos mabecos, e tu começavas a chorar,
Saudade?, Sim, António, o problema do nosso pai é a saudade,
Sentava-se sobre a geada da noite, e na sombra dos cigarros desenhava sorrisos junto ao peito, as mão encolhidas no bolso do sobretudo, os olhos saiam-lhe das órbitas e penduravam-se nos candeeiros engasgados na noite, e morcegos agarravam-se-lhe ao pescoço,
- Fingia que adormecia,
Sentado ao volante do camião, a lua descia e escondia-se na lama, chovia, chovia muito, e eu dentro da barriga da minha mãe a recordar o Mussulo e o mar, gaivotas abraçadas aso lábios das ondas, e o meu pai,
Fingia que adormecia…
(texto de ficção)