Blog de Luís Fontinha. Nasceu em Luanda a 23/01/1966 e reside em Alijó - Portugal desde Setembro de 1971. Desenhador de construção civil, estudou Eng. Mecânica na ESTiG. Escreve, pinta, apaixonado por livros e cachimbos...

09
Out 11

 

(desenho de Luís Fontinha)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 23:04

O parvo acreditava em tudo o que lhe diziam,

Que o mar só tem ondas porque existe o vento, que se uma borboleta bater as asas na Indonésia um tufão nos Estados Unidos da América acorda e começa a cuspir silêncios de água suspensa nas manhã de solidão,

E que deus está sentado à direita do pai,

O parvo acreditava em tudo o que lhe diziam,

Que as nuvens são pedacinhos de algodão e as mulheres têm nos lábios sorrisos de mel,

- É tudo uma aldrabice pegada Confessava ele na esplanada do café onde quatro amigos invisíveis o acompanhavam,

O parvo acreditava em tudo o que lhe diziam e que o amor quando verdadeiro é como as estrelas do céu, cintilam e prendem-se às janelas das árvores deitadas na praia,

- É tudo uma aldrabice pegada os quatro amigos invisíveis e a lua e Luanda e o mar,

Nunca existiram,

O parvo acreditava em tudo o que lhe diziam,

E que os beijos são o pôr-do-sol antes de cair a noite sobre o rio que corre apressadamente para o mar,

- E que nunca existiu,

Belém,

- E que nunca existiu,

Calçada da Ajuda,

- E que nunca existiram,

Putas a pedincharem cigarrinhos junto à estação de Cais de Sodré,

- E que nunca existiu,

Um menino debaixo das mangueiras a espetar pregos na sombra da tarde e sobre o triciclo o chapelhudo em queda livre até aterrar junto à capoeira, e as galinhas fingiam que acreditavam em tudo, dava-lhes grãozinhos de areia trazidos propositadamente da ilha do Mussulo e elas que acreditavam em tudo agradeciam-me,

- O milho saboroso da madrugada,

Um menino que corria entre o néon dos musseques e as lágrimas do céu, um menino que acreditava em tudo,

- O milho saboroso da madrugada,

Que tombava como pétalas de dor das mãos do menino que acreditava que os barcos tinham mãos, e que os aviões quando lá no alto encolhiam e adormeciam junto a deus sentado à direita do pai,

- E que nunca existiu,

E que nunca existiram mangueiras no meu quintal,

- E que nunca existiu,

Calçada da Ajuda,

- E que nunca existiram,

Cacilheiros enrolados ao cacimbo,

Porque o parvo que acreditava em tudo o que lhe diziam,

Um dia,

Deixou de acreditar,

E as galinhas deixaram de comer os grãozinhos de areia trazidos propositadamente da ilha do Mussulo,

- O milho saboroso da madrugada,

Nas ruas de Luanda.

 

(texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 22:07

Não tenho nada

Não amor para dar

Beijos para receber

Madrugada

Palavras para escrever

Nos desejos de amar,

 

Não tenho nada

Ninguém a abraçar-me nas noites de ausência

Beijos para receber

Dos lábios da gaivota revoltada

Não tenho nada

E roubaram-me a infância,

 

Não tenho nada

Não amor para dar

E da minha mão cansada

Esconde-se o sorriso do mar…

publicado por Francisco Luís Fontinha às 20:48
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(desenho de Luís Fontinha)

 

Chegaste tardíssimo a casa

À tua cama adormecida em palavras de nada

Tropeças nos meus livros

E nos teus lábios refrescam-se as acácias do céu

 

Às estrelas pendura-se o sorriso da lua

Depois de o vento mergulhar no silêncio do mar

O guindaste da tarde ancora-se à torre da igreja

E desce até beijar as abelhas que poisam nos teus cabelos

 

Embebidos nas palavras de nada

Abre-se a janela e da rua ausenta-se uma criança

E duas sombras conversam nas tuas mãos de linho

 

- Tenho medo de acordar

 

Quando o meu corpo voa sobre os sobreiros

Que a noite planta na tua saudade

 

Chegaste tardíssimo a casa

À tua cama adormecida em palavras de nada

Deitas-te sem me abraçar…

E percebo que tudo em mim não passa de um sonho.

publicado por Francisco Luís Fontinha às 19:33

Tropeçava no vento e quando se encostava à madrugada desciam silêncios do céu, estendia os bracinhos com um sorriso e tocava nas estrelas,

O meu pai,

Nas estrelas a fumar cigarros e a recordar a infância que se ausentou muito antes de ter nascido, o meu pai de musseque em musseque e de picada em picada, o meu pai que se escondia no cacimbo,

Quando no capim cresciam os meninos que dormiam de pé, que se escondia no capim e adormecia debaixo dos coqueiros embebido na maré,

O meu pai,

Sem fé,

Ausente da mãe,

De pé ente pé e subindo ao trigésimo andar da noite e depois de ser expulso da noite descia e descia e descia,

As escadas trémulas em madeira,

E acordava no Mussulo,

Chamava as gaivotas e vinham até ele os pássaros negros, mulheres de luto e que choravam os filhos e que choravam os maridos e que choravam,

- Maldita guerra sem sentido ouvia-o eu enquanto lhe apertava a mão e fazia caricias nos barcos estacionados junto às mangueiras,

E todas as guerras não fazem sentido,

O meu pai,

Que atravessa o rio e quando acorda percebe que está ao antigo Congo Belga à procura de nada,

E caminhava e caminhava e caminhava,

À procura da mãe,

E encontra um cacho de bananas e arroz com chouriço e arroz com chouriço e arroz com chouriço,

Trinta dias e trinta noites dizia-lhe o médico de receituário na mão,

- E antes de deitar,

Deambulava pelos canteiros de malmequeres que viviam junto à baía, sentava-se numa cadeira e esperava que a noite se escondesse numa caixa de sapatos,

Tropeçava no vento e quando se encostava à madrugada desciam silêncios do céu, estendia os bracinhos com um sorriso e tocava nas estrelas,

E uma e outra e mais outra,

Cerrava os olhinhos,

E ausentava-se da infância,

- Nasci bebé e ao outo dia já era homem,

E ao outro dia de musseque em musseque e de picada em picada,

Como as abelhas deitadas no pólen do amanhecer,

O meu pai,

- Nasci bebé e ao outo dia já era homem,

E o meu pai que se escondia no cacimbo e evaporava-se nos céus de Luanda todas as noites, e à meia-noite ancorava-se nele o cheiro de África,

Da terra húmida,

E de papagaios de papel que um miúdo erguia no céu,

Eu.

 

(Texto de ficção)

publicado por Francisco Luís Fontinha às 00:06

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